Opinião
Queimar dinheiro na praça pública
A obra de Gaspar consiste apenas e só em queimar dinheiro numa pira funerária, provocando directa e activamente a degradação das condições de vida de milhões de pessoas. Destruição a troco de nada, portanto.
A dupla de artistas britânicos Bill Drummond e Jimmy Cauty concebeu em tempos um projecto verdadeiramente original: queimar na praça pública 1 milhão de libras, correspondentes à totalidade dos recursos acumulados pela K Foundation por eles criada para financiar as suas actividades.
A operação, que durou 67 minutos, foi efectivamente concretizada na ilha de Jura, dadas as dificuldades práticas de levá-la a cabo num local muito frequentado. Esteve presente um jornalista que relatou o evento numa peça publicada pelo "The Observer".
Tanto o significado como a validade do acto criativo foram discutidos durante anos pelos críticos de arte. Quanto aos autores, defenderam-no até muito recentemente como um estímulo a uma meditação aprofundada sobre o valor e o poder do dinheiro na sociedade contemporânea. Até que um dia, amargurado, Bill Drummond acabou por confessar: "É-me cada vez mais difícil justificar perante os meus filhos o que fiz".
Apreciou esta estória? Então vai adorar aquela que de seguida lhe vou contar.
Em 2011 e 2012, o governo português programou retirar da economia, sob a forma de aumentos de impostos ou cortes da despesa, 18 mil milhões de euros; todavia, a redução efectiva do défice ficou abaixo de 5,8 mil milhões. Pelo caminho, desapareceram 12,2 mil milhões.
Tenho, por conseguinte, o orgulho de poder anunciar-vos que o nosso pequeno, mas engenhoso país ultrapassou estratosfericamente a façanha dos dois ingleses, queimando nos dois últimos anos uma quantia de dinheiro no mínimo 12 mil vezes superior.
A questão que convém esclarecer é esta: para onde foram esses 12,2 mil milhões?
Por força da política de austeridade aplicada, reduzindo-se a actividade económica, ficou a cobrança de impostos muito aquém do esperado; por outro lado, a quebra da actividade económica implicou mais despesa com subsídios de desemprego. A contrapartida real do desvario austeritário foi, pois, a destruição de riqueza nacional num valor próximo dos 6% do PIB.
Como, apesar da colossal dimensão do sinistro, a notícia passou relativamente despercebida dos portugueses, talvez seja indicado recordar mais devagarinho o que sucedeu: a carga fiscal atingiu níveis intoleráveis; reduziu-se a oferta dos serviços públicos; degradou-se drasticamente a sua qualidade; trouxe-se o desemprego para níveis record; cortou-se drasticamente o rendimento disponível das famílias; milhares e milhares de empresas fecharam as suas portas – e, apesar da escala da austeridade aplicada, foi mínimo o impacto de toda essa loucura sobre o défice público.
Por outras palavras, torrou-se dinheiro em Portugal numa escala e a uma velocidade nunca vistas ou imaginadas.
Pessoas preocupadas com a má despesa pública fulminam a rotunda supérflua, o pavilhão gimnodesportivo subutilizado, a estrada onde passam poucos carros. Mas em todos esses casos, ficou apesar de tudo alguma coisa que podemos ver e, se necessário, utilizar. Ao passo que a obra de Gaspar consiste apenas e só em queimar dinheiro numa pira funerária, provocando directa e activamente a degradação das condições de vida de milhões de pessoas. Destruição a troco de nada, portanto.
Por outras palavras, a delapidação de recursos eventualmente operada por anteriores governos é discutível, parcial e relativa, ao passo que a promovida por este é inquestionável, total e absoluta.
12,2 mil milhões de euros dariam para muitas aplicações simultâneas ou alternativas para todos os gostos e critérios: um novo aeroporto de Lisboa, uma mão cheia de hospitais e centros de saúde, completa renovação do parque escolar, centros de investigação, formação profissional, recapitalização da segurança social – enfim, uma infinidade de bens colectivos ao serviço do bem-estar das populações e do investimento produtivo.
Todavia, já que, nos tempos que correm, a opinião dominante prefere a qualquer outra eventualidade a pura e simples destruição de recursos, seria de esperar que ao menos ela fosse conduzida com um mínimo de método e grandeza. Desde logo, porquê levá-la a cabo discretamente, longe das vistas do país e do mundo?
Porque não promover antes periodicamente no Terreiro do Paço um gigantesco auto-de-fé para queima de dinheiro, transmitido em directo pela RTP para Portugal e para o Mundo, capaz de tornar universalmente famoso o nosso desprendimento dos bens materiais? Imagino esse "reality-show" presidido pelo primeiro-ministro e pelo ministro das Finanças rodeados por todos os altos dignitários do regime e sob o alto patrocínio do Presidente da República. Concebo centenas de milhares de pessoas ao rubro quando um gigantesco projector lançasse sobre eles os dizeres "Portugueses, sois grandes!" Outros projectores estrategicamente colocados inscreveriam nas fachadas da velha praça questões como: "Is it rock n’ roll?", "Is it a crime against humanity?", "Is it madness?", "Is it a political statement?", "Is it an investment?", "Is it inverted capitalism?", "Is it bullshit?" Talvez os luteranos apreciassem a lição moral subjacente ao evento e nos valorizassem mais por isso.
Quem sabe se, um dia, daqui a muitos anos, repetindo Bill Drummond, não ouviremos também Gaspar confidenciar-nos: "É-me cada vez mais difícil justificar perante os meus filhos o que fiz"?
Director-geral da Ology e docente universitário
jpcastro@ology.pt