Opinião
A maldição do estado social
Variam muito as opiniões sobre que funções cabem ao certo na definição do estado social, mas toda a gente parecer concordar que entre elas se contam a saúde e a educação.
Ora, um dos problemas que ameaçam a sua sustentabilidade decorre da tendência, ao que parece inexorável, para a escalada dos custos associados a essas duas áreas do serviço público. Quais as causas da pressão que elas assim colocam sobre o equilíbrio das contas públicas?
Muitos afirmam que a saúde custa cada vez mais porque a população está a envelhecer, médicos e pacientes são pouco sensíveis ao problema e o progresso tecnológico por si mesmo suscita a expansão inconsiderada de exames e tratamentos. Quanto à educação, culpa-se o alargamento da escolaridade média e o poder sindical dos professores pelo agravamento da factura da educação.
O economista americano William Baumol fez há muito notar que o potencial de aumento de produtividade varia imenso de actividade para actividade. Hoje, como no século XIX, são necessários quatro músicos para tocar um quarteto de Beethoven; entretanto, a produção de uma camisa de algodão exige hoje uma fracção das horas de trabalho utilizado naquela época. O resultado é que o preço de uma camisa baixou muito em relação ao de um bilhete para escutar um quarteto de Beethoven; ou, inversamente, o segundo aumentou muito em relação ao primeiro.
Logo, se a procura que lhes é dirigida não diminuir, aumentará continuamente o peso na despesa nacional dos gastos com bens produzidos por sectores de produtividade baixa ou estagnada. É em parte por isso que a proporção dos serviços no PIB cresceu imparavelmente até se situar hoje nos países desenvolvidos entre os 80% e os 90%, o que é interpretado por uma opinião pública mal informada como sintoma de desindustrialização e decadência económica. É também por isso que, concentrando-se a actividade produtiva do estado nos serviços, tende a crescer o peso dos gastos públicos no PIB.
A perspectiva da subida contínua dos preços relativos dos serviços pessoais trabalho-intensivos resistentes à automação afigura-se, à primeira vista, algo assustadora. Segundo algumas estimativas, se os custos dos cuidados de saúde continuarem a subir como até agora, saltarão de 15% do rendimento do americano médio em 2005 para 62% em 2105, um século depois. Nessas condições, uma vez pagas essas e outras despesas com serviços essenciais, pouco sobrará para tudo o resto, incluindo coisas tão vitais como habitação, transporte, alimentação e vestuário. Note-se, além disso, que esta previsão em nada depende de a prestação dos serviços de saúde ser pública ou privada.
Como corolário desta dinâmica dos custos, caso uma parte substancial da saúde e da educação continue a ser assegurada pelo estado, a despesa pública representará uma parte cada vez maior do rendimento nacional, certamente muito superior aos 50% que já hoje são comuns nos países mais desenvolvidos e que tanto alarmam muito boa gente.
Sucede, porém, que a generalizada preocupação com este problema resulta em boa parte de um mal-entendido e que a cura usualmente proposta para o resolver pode ter resultados bem mais graves que a doença. Desde logo, embora uma parte cada vez mais reduzida do rendimento seja dedicada à aquisição de bens físicos, o crescimento sustentado da produtividade agrícola e industrial significa precisamente que essa parcela, embora menor, nos permite comprar cada vez mais alimentos, automóveis, roupas ou computadores. De modo que poderemos ter ao mesmo tempo acesso a mais bens produzidos tanto pelo sector crescentemente automatizado da economia como pelo de produtividade estagnada.
O problema não reside, pois, na existência de actividades que, pela sua própria natureza, oferecem escassas oportunidades de aumento da produtividade, mas na errada percepção das causas do aumento dos seus preços relativos e na tentativa de impor soluções desajustadas. Se o financiamento da saúde e da educação for estrangulado a pretexto de que não há alternativa, assistiremos simultaneamente à degradação da qualidade dos serviços prestados e à exclusão de cada vez mais cidadãos do acesso aos seus benefícios, com o que toda a economia e toda a sociedade acabarão por ser prejudicadas.
Por outras palavras, se as forças políticas e os governos se aferrarem a regras arbitrárias e irracionais do tipo: "o custo da educação não pode ultrapassar 5% do produto" ou "a despesa pública deve situar-se abaixo dos 50% do produto", estarão a criar artificialmente um problema, onde nenhum existe. É a essa fábula que se pode com propriedade chamar "a maldição do estado social".
No seu recente e inspirador livro, "The Cost Disease", William Baumol lança este aviso: "Se os governos não forem persuadidos por estas ideias, os cidadãos poderão ver ser-lhes negados saúde, educação e outros benefícios porque ‘parecem’ ser inacessíveis, quando de facto não o são." E acrescenta: "A continuação do crescimento da produtividade geral permitirá que a família típica continue a desfrutar de uma abundância de bens; porém, se o estado reagir de forma inapropriada, os cidadãos poderão ser penalizados por uma forte degradação dos serviços públicos em áreas como a recolha de lixo."
Director-geral da Ology e docente universitário
jpcastro@ology.pt