Opinião
Onde param os socialistas?
Que resta ao PS de socialismo, mesmo que "à portuguesa" esse socialismo alguma vez tenha sido? Benevolentemente, pouco; rigorosamente, nada.
Em termos canónicos, o socialismo não existe em parte alguma, naufragado entre a capitulação histórica dos seus dirigentes (incluindo Jean Jaurès e, numa perspectiva mais trágica, Léon Blum) e a perversão de gerir, com intenso êxito!, um capitalismo torpe e sem a menor grandeza. O "socialismo real" terminou em 14 de Fevereiro de 1956, com o Relatório Kruschev. Gorbachev foi o epígono inexorável. Os desapontamentos, as perplexidades e os desencantos, resultantes do documento que escarmentava Estaline e revelava os seus crimes, mortificaram milhões e milhões de homens.
O eurocomunismo surgiu como emenda. Mas não era solução. Togliatti, no seu dramático testamento, previra o que Berlinguer não conseguiu evitar. O "compromisso histórico", com Aldo Moro, foi imediatamente contrariado pelo americano Jimmy Carter e pelo alemão Helmut Schmidt, no sinistro Pacto de Porto Rico. Carter e Schmidt acordaram em que comunistas no Poder, em Itália, era não só impensável como evitável a todo o custo. Sabe-se a que preço sangrento. O assassínio de Moro é um crime sem nome. Sabe-se, hoje, quem manobrava as Brigadas Vermelhas. E também se sabe que o mundo seria diferente, caso o acordo entre a Democracia Cristã e o PCI tivesse seguimento histórico. François Furet chegou a experimentar essa suposição.
O Partido Socialista português tem sido mais uma representação teatral do que a prática de uma experiência ideológica. As "alianças" políticas usadas ou professadas aniquilam o rigor moral a que se devia. Para já não falar na questão doutrinária e política. Em tempos, escrevi que o PS era o MDP do PSD. Emendo: o PS é um PSD em staccato. Seria mais sério casarem-se do que viver neste conúbio ambíguo. O contrato sobre a Justiça, abençoado pelo Chefe do Estado, indicia que, em breve, novos assentos serão firmados.
Não há alternativa, nem alternância. De transigência em transigência, o PS é outra coisa, para ser coisa nenhuma. Bagão Félix, que pode ser acusado de todas as malignidades, mas é dono de uma das melhores cabeças da Direita, exige, ainda, uma capitulação maior e uma desfiguração definitiva do Partido Socialista. Declara que o "não" de Sócrates a uma "reforma sistémica" [sic] da Segurança Social "é uma cedência do Governo aos sectores mais à Esquerda do PS". Bagão defende a sua dama. E, neste torneio, os cavaleiros socialistas baixam o montante.
Basta querer ver - para ver. Na verdade, o PS, quando no Poder, nunca conseguiu melhorar as nossas vidas. Pelo contrário. Exemplo actual: as novas taxas moderadoras em nada resolvem os problemas da saúde. São mais impostos dissimulados. Como afirmou o dr. Pedro Nunes, bastonário da Ordem dos Médicos, trata-se de um financiamento; se forem altos, estão feridos de inconstitucionalidade; se forem baixos, não resolvem coisíssima nenhuma. Ou, como muitos asseveram, representam outra machadada no Serviço Nacional de Saúde.
O Estado Social tem de ser repensado. Para o melhorar, não para o destruir. Como? Defendendo o velho modelo europeu de sociedade, no estabelecimento de uma espécie de conciliação entre responsabilidade do Estado, responsabilidade colectiva e responsabilidade individual. Creio, e estou bem acompanhado, que este combate exige políticos cuja herança não tenha sido precedida de testamento [René Char] e sejam capazes de repensar a "globalização" reafirmando o papel do trabalho na sociedade. Os números são significativos: outrora, nos países industrializados, os trabalhadores consagravam cem mil horas ao trabalho, durante a vida; actualmente, são dispensadas entre setenta mil a setenta e cinco mil horas. Calcula-se que, dentro de cinquenta anos, o número de horas de trabalho não ultrapassará as quarenta e cinco mil.
A questão é imperiosa: que democracia desejamos? A que implica a participação activa e efectiva de todos os cidadãos, ou a que é proposta pelas leis do mercado, cuja finalidade é o lucro pelo lucro? A Esquerda devia fazer ressaltar as possibilidades da criação de um terceiro sector de actividade, entre o mercado e o sector público, sem nunca descurar a importância deste último. Jacques Delors escreveu: "É preciso redefinir as bases do contrato social: aceitamos a democracia de opinião, com os média, as sondagens? Ou queremos, antes, restabelecer uma democracia mediatizada?"
As minorias, cada vez mais alargadas, são, também, cada vez mais marginalizadas. Releva de uma peculiar des-democratização o facto de o PS sistematicamente recusar o diálogo com as forças à sua esquerda. Assim como já quase deixou de causas surpresa o secretismo com que os dirigentes socialistas estabelecem compromissos, acordos e combinações à revelia da clareza exigida pela própria natureza das suas origens. E José Sócrates, susceptível como um samurai, diz pouco do que não quer dizer, e a sua direcção em nada contribui para a discussão ideológica: segue a regra, é um tributo ao mercado, sem reserva nem reflexão. Honra lhe seja: o seu discurso nunca cedeu à palavra socialismo. Quando muito, falou de "Esquerda moderna", expressão sem vértebras que chega a ser deprimente.
Torna-se cada vez mais penoso viver em Portugal. E muitos dos meus correspondentes "em linha" começam a ser concordes em que, se a política é a arte da espera -, já andamos a esperar há demasiado tempo.
APOSTILA 1 - Outro livro que recomendo aos meus Dilectos: "Para Onde Vão os Valores?", uma importante série de estudos e reflexões, coordenada por Jérôme Bindé, incluída na série Debates do Século XXI, Colecção Epistemologia e Sociedade, edição do Instituto Piaget. Um volume de consulta indispensável a quem deseja estar a par do que acontece à sua volta.
APOSTILA 2 - Fernando Lopes, velho parceiro de tudo, sonhos, filmes, livros, amigos, noites ganhas em alegres discussões na Cervejaria Ribadouro, acaba de apresentar "98 Octanas", película na qual tem João Lopes como cúmplice. Os dois Lopes são gente do melhor que Portugal ainda tem. João é um crítico notável, inteligente, culto, sábio e bem-educado, o que não é nada despiciendo. Fernando é, com Alberto Seixas Santos, o maior cineasta da geração de 60. Há muito de autobiografia transposta neste filme com imagens muito belas. Até o rosto da actriz principal tem algo a ver com o belíssimo rosto da mãe do Fernando, que ele filmou numa apaixonada devoção. Aliás, num filme anterior, "O Fio do Horizonte", o actor principal, Claude Brasseur, era "igual" ao Fernando. Até na ambiguidade da bipolarização.