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03 de Junho de 2008 às 13:59

O súbito interesse nos pastéis de nata

Esta é a história de como, no curto espaço de uma década, o pastel de nata saltou do balcão pequeno e escuso de uma pastelaria na ilha de Coloane em Macau para o Kentucky Fried Chicken onde, ao lado da figura sorridente do coronel Sanders, servido com um ice coffee, faz hoje as delícias de todo o Sudeste asiático.

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Tudo começou em 1989, numa altura em que um conhecido cozinheiro português se deslocava regularmente ao Hotel Hyatt, na Taipa, em Macau, para promover festivais de comida portuguesa. Uma iguaria obrigatória era, claro, o pastel de nata. Por ele se interessou um australiano residente em Macau há já vários anos, farmacêutico de profissão e que após uma tentativa falhada de abrir uma farmácia no território acabara a trabalhar no casino do hotel. Durante as estadas do chefe português, Andrew não parava de o importunar. Como se consegue esta massa estaladiça de mil folhas? E este creme rico e saboroso? Com uma informação daqui, outra de acolá e o gosto pela experimentação da sua prática farmacêutica, em breve Andrew estava pronto para mudar de vida. Abriu uma pequena pastelaria no canto de um largo em Coloane a que chamou “Andrew’s” e ali mesmo, apenas com um balcão, sem uma única mesa à qual nos pudéssemos sentar, começou uma gloriosa história de sucesso.

Os pastéis de Andrew não eram bem os “nossos”. Ele adaptara-os ao gosto asiático, eram maiores, a massa mais pesada, o recheio mais doce e enjoativo, mas chamara-lhes Portuguese Egg Tarts ou, em cantonês, Portuguese Dan Tat, servia-os quentes e cheios de canela. Aos domingos, os turistas de Hong Kong faziam filas para os comprar. Diz-se que um dia um cliente mais entusiasta encomendou nada menos do que 150 dúzias e Macau tornou-se de repente demasiado pequeno para guardar tal segredo. Foi aberta uma filial em Hong Kong, igualmente pequena e escusa, igualmente assediada por uma enorme fila de clientes que ainda mais se adensou quando foi vista e fotografada em penosa espera uma célebre actriz de cinema que apenas queria comprar meia dúzia. O pastel de nata tornou-se companhia obrigatória do chá das cinco em Hong Kong, objecto de troca de presentes e adoçou muitas tardes ásperas nos escritórios das torres de vidro dos especialistas em alta finança da cidade. Em Macau todos queriam aprender a fazê-los, uma espécie de direito moral, dadas as ligações antigas a Lisboa.

Foi neste clima de euforia que um dia recebi um telefonema de alguém que não conhecia, mas que se apresentou como familiar de uma amiga e disse ser chinês de Hong Kong residente no Canadá. Convidava-me para almoçar e queria falar-me de um assunto de interesse comum. Aceitei, incapaz de resistir à mais leve curiosidade e foi assim que me vi no reservado de um primeiro andar de um restaurante na zona mais densamente povoada de Macau. Depois de uma introdução longa em que, um a um, foram consumidos os seis primeiros pratos de uma refeição chinesa, o meu anfitrião confessou-me que, sabendo das minhas ligações a Portugal, visto que eu era portuguesa, o seu desejo era propor-me um negócio de fabricação das famosas Portuguese Egg Tarts, as verdadeiras – nem eu poderia produzir outras, sendo portuguesa – que pudéssemos depois, com legitimidade, introduzir na China. Explicou-me todos os pormenores do negócio e apresentou números: para já milhares e depois milhões de chineses se iriam deliciar com as tartes. Adivinhando alguma relutância da minha parte, o meu interlocutor não hesitou em recorrer à simbologia chinesa, invocando a nossa amizade e colaboração futuras como a imagem de um rio deslizando entre duas montanhas, fertilizando as planícies por onde corre e desaguando numa placidez dourada, no sítio exacto onde bebe o dragão.

Contudo, por essa altura, já Andrew tinha vendido a fórmula do Portuguese Dan Tat ao Kentucky Fried Chicken e este entrara em força em Hong Kong e Taiwan e mais tarde em toda a China. “A febre dos Portuguese egg tart varre a cidade de Taipei”, diz o Taiwan Journal, de 9 de Novembro de 1998, e acrescenta existirem sinais por todo o lado desde as longas filas nas pastelarias do centro, aos anúncios de parede, à escassez de ovos nos produtores locais. O jornal informa que, para atrair clientes, até uma loja de venda de computadores havia instalado um armário de vidro sobre o balcão com as famosas tartes. Quando a KFC introduziu os pastéis de nata já estes eram conhecidos em Taiwan, mas a sua presença na cadeia contribuiu para aumentar a febre e nem mesmo ela estava preparada para tamanho êxito. O jornal dá conta de muitos oportunistas que, depois de esperarem mais de três ou quatro horas numa fila, os compram às centenas para montarem uma banca logo ali ao virar da esquina e os venderem pelo dobro do preço. Para evitar semelhante comportamento, muitas lojas limitaram o número de unidades vendidas a cada cliente o que ainda mais exacerbou o desejo de as comprar. Um representante da KFC confessou-se admirado com tanto sucesso e de certo modo apreensivo, pois em regra tamanho alvoroço no início poderá prejudicar o produto no futuro.

Ainda antes do virar do século, o pastel de nata já era vendido um pouco por todo o lado na China, embora muito do entusiasmo inicial se tenha perdido, lembrei-me desta história ao deparar recentemente em Xi’an, no coração da China, com os famosos pastéis em evidência na montra de uma pastelaria da moda. Ao lado deste objecto de eleição estavam uma magnífica embalagem cilíndrica especialmente concebida para oito unidades, o número da sorte, e um cartaz de fundo dourado e letras vermelhas onde se lia em chinês e inglês: “Portuguese egg tarts, o gosto internacional é mundialmente famoso”. O Portuguese egg tart faz o seu caminho.
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