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O PS e o OE’2006: uma volta de 180 graus

Ele há ocasiões em que as opções que se tomam vêm a causar, a posteriori, embaraço e mesmo arrependimento, por virem a revelar-se, nessa altura, como tendo sido desadequadas e contraproducentes.

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Vem isto a propósito do Orçamento do Estado para 2006 (OE’2006), entregue na semana passada na Assembleia da República pelo Governo apoiado (com maioria absoluta no Parlamento) pelo Partido Socialista (PS).

Quem acompanha estas coisas da economia e da política em geral recordar-se-á, certamente, das posições que o PS tomou no que toca à consolidação das finanças públicas, quer nos seis anos de governação de António Guterres (do qual fizeram parte, entre outros, o actual primeiro-ministro, José Sócrates, quer como secretário de Estado, primeiro, quer como ministro, depois; e também Fernando Teixeira dos Santos, o actual ministro das Finanças, então secretário de Estado do Tesouro e das Finanças de Sousa Franco), quer depois, na oposição, nos quase três anos de governação PSD/CDS-PP. Que a dimensão do Estado não devia ser reduzida, que a despesa pública, e em especial o investimento público, tinha a obrigação de ser o motor da economia, puxando pelo sector privado. Foi por isso que, mesmo em tempos de «vacas gordas», bem diferentes dos de agora, no período que antecedeu a nossa entrada no euro (isto é, 1996-1999), e mesmo em 2000-2001, quando o adequado teria sido uma contenção/consolidação das finanças públicas feita essencialmente do lado da despesa, que nos desse condições orçamentais para enfrentarmos com sucesso um novo e exigente ambiente como era o da moeda única, assistimos a um crescimento da despesa pública que quase chegou aos 10% ao ano, quer na despesa total, corrente, quer na despesa primária (descontando os juros da dívida pública).

Depois, quando a partir de 2002 se tentou travar a fundo esta tendência, que inevitavelmente nos levaria a um período de «vacas magras», que se iniciou em 2001 e que ainda hoje sentimos, o PS, então na Oposição, manteve a mesma postura, nunca tendo apoiado as medidas estruturais de contenção (como o quase congelamento dos salários da função pública, a drástica redução na admissão de novos funcionários públicos, um refreamento do investimento público, ou a fusão de alguns serviços e institutos públicos) ou de consolidação (como o fim do crédito bonificado à habitação, a introdução de penalizações para os funcionários públicos que pretendessem aposentar-se antes dos 60 anos de idade e 36 de serviço –  com o objectivo de aproximar as regras da segurança social pública do regime geral –, ou a reforma da administração pública que, por força da dissolução do Parlamento no fim do ano passado, nunca chegou a ser implementada na prática).

Mal sabiam os socialistas o que lhes estava reservado - e não daí a muito tempo.

Na verdade, depois da vitória do engº Sócrates nas eleições de Fevereiro último, das imposições do Pacto de Estabilidade e Crescimento (que, mesmo flexibilizado, manteve limites apertados em termos de política orçamental) e, reconheça-se, da escolha de Luís Campos e Cunha como ministro das Finanças, o discurso mudou mesmo, e passou a privilegiar a consolidação das contas públicas pelo lado da despesa.

Certo, os impostos foram aumentados (opção de que discordei, por razões que já expressei nesta coluna) ainda no Orçamento Rectificativo de 2005, mas ao mesmo tempo foram tomadas medidas do lado da despesa que, julgo eu, os «socialistas clássicos» nunca sonharam ter que apoiar. É o caso da suspensão (temporária) das progressões das carreiras dos funcionários públicos. Ou a revisão dos regimes especiais de médicos e professores. Ou ainda o aumento da idade legal da reforma no sector público, igualizando-a, em 10 anos, aos 65 anos que vigoram no resto da economia.

Entretanto, mudou o ministro das Finanças, entrou Teixeira dos Santos, mas o OE’2006 corporizou mesmo estas e outras opções para o ano que aí vem. É certo que o peso da despesa pública no PIB desce em 2006, apenas 0.5 pontos percentuais, para 48.8% – o que é «curto» para as necessidades da nossa economia. Que o esforço de consolidação é feito, na sua maior parte, do lado da receita (2/3, para 1/3 do lado da despesa). Que o Governo insiste, teimosamente, em apostar em projectos cujo efeito na nossa economia é extremamente duvidoso em termos de rendibilidade e de competitividade, como o aeroporto da OTA (sobretudo) e o TGV. Que o modelo de financiamento das SCUT continua a ser injusto, e a não privilegiar o princípio do utilizador-pagador. Que a nossa competitividade fiscal continua a ser esquecida pelo Executivo, que não olha para as grandes tendências internacionais na matéria. Tudo isto é verdade - e é negativo.

Mas, sinceramente, nunca imaginei ver a bancada socialista no Parlamento vir a aprovar um Relatório do Orçamento do Estado que contém passagens de tal forma ultra-liberais ou monetaristas que só visto (talvez deixassem surpreendidos Milton Friedman ou Robert Lucas, da Escola de Chicago, por exemplo...).

Não resisto a transcrever, aqui, um desses excertos, que pode ser encontrado na página 5 do Relatório que acompanha o OE’2006:

«A literatura económica mostra que as consolidações orçamentais baseadas na redução da despesa são em geral mais bem sucedidas do que as assentes em aumentos de impostos. Por outro lado, uma política de contenção e de racionalização da despesa pública pode não apenas aumentar o potencial de crescimento económico a médio e longo prazo (por efeitos sobre a oferta), mas também estimular o nível de actividade no curto prazo (por efeitos sobre a procura). Este estímulo, que pode ser suficientemente forte para se sobrepor aos efeitos keynesianos convencionais, está intimamente ligado à confiança dos agentes económicos e, como tal, à credibilidade da política orçamental. O investimento privado poderá ser particularmente estimulado por uma estratégia credível de redução do défice orçamental».

Desde os tempos em que me comecei a interessar por «estas coisas» da economia que concordo com o raciocínio acima exposto numa perspectiva de médio e longo prazo - mas acreditar que, num primeiro momento, a curto prazo, a contenção e racionalização da despesa pública não têm um efeito depressivo sobre a actividade, é obra! Não julgo, aliás, que seja possível encontrar, nos Relatórios dos OE’2003, 2004 e 2005 (elaborados pelos Governos de coligação PSD/CDS-PP), raciocínios económicos tão dogmáticos e ultra-liberais como os acima referidos.

Quem diria que seria possível ver um Partido-que-se-diz-Socialista aprovar e votar favoravelmente intenções destas? Pois é isto mesmo que acontecerá, quando as votações na generalidade e na especialidade tiverem lugar na Assembleia da República. No que constitui uma volta de 180 graus em relação a um passado não muito distante, em que até mesmo o actual primeiro-ministro defendeu o contrário do «tratamento» que agora, pelo menos em discurso, propõe para as nossas finanças públicas. Ele há mesmo posições que são tomadas e que, depois, se vêm a revelar uma verdadeira maçada. E que retiram toda a credibilidade a quem as defendeu...

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