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Opinião
07 de Março de 2008 às 13:59

O perigo das maiorias absolutas

A queda de popularidade de José Sócrates e a indicação de que o PS não terá maioria absoluta nas legislativas sugerem alguns motivos de reflexão. Historicamente, demo-nos mal com maiorias absolutas. A correcção veio depois; talvez tarde. Cavaco governou à

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O betão foi a prioridade. Para o bem e para o mal, procedimentos mais urgentes foram postergados. Mas, pior do que isso, foi a criação de uma mentalidade condicionada, sem rasgo e desprovida de imaginação e de criatividade. A década de Cavaco Silva distingue-se pela crispação, pela ausência de sensibilidade social, pela inexistência do conceito humanista nascido com o 25 de Abril e pelo paroxismo da “competitividade.”

Uma estranha geração de “gestores”, frigorificada na indiferença pelo outro, austeramente vestida de cinzento-escuro, gel nos cabelos e ideias rasas emergiu destinada a inscrever os interesses da “eficácia” contra os paradigmas dos “valores simbólicos.” Muita dessa gente, moldada na conjunção do “pragmatismo” com os dados estatísticos, ainda por aí anda. Aufere vencimentos sumptuosos, anexados a reformas obscenas, estatuídas através de contratos por ela mesma pensados e postos em prática. Uma minoria, cujos humores institucionais oscilam entre o desaforo, a falta de convicções e a arrogância de quem se julga acima do céu e da terra.

Muitos deles procedem do “esquerdismo”, andaram encapuçados a defender os SUV’s (para quem não saiba, Soldados Unidos Vencerão), a espancar quem se lhe opunha, berrando por Mao e por Enver Hoxa, instaurando a contestação ininterrupta contra o PCP como forma superior e genuína do marxismo, e urdindo a intriga e a desconfiança nos locais de trabalho por onde passaram. Em todos os governos saídos da “normalização” do 25 de Novembro encontramos dezenas de entre eles, impermeáveis a qualquer tipo de remorso ou a estremecimentos de carácter. São os mais ardorosos defensores das maiorias absolutas, como garantia da sua permanência nos lugares de favor.

A maioria absoluta converte-se em poder absoluto. Não há que escamotear. As evidências não carecem de argumentos contrários. Cavaco impulsionou, creio, até, sem saber muito bem o que fazia, um pensamento político não ideológico, como se tal coisa pudesse dispor de alguma consistência. Os “tecnocratas” provêm desse almofariz. Com vinte anos de atraso, emergiram os yupies, fauna regularmente tola e ignara, com uma afirmação constante de “juventude”, aliada à “leveza”, à “frescura” e à “desenvoltura.”

Perdemos, não uma década, mas muito mais, porque os estragos são duradouros. Sofrendo de atroz iliteracia, amolgando o verbo e tropeçando nos pronomes para se estatelarem numa adjectivação alucinada, essa “juventude” tem, agora, 40, 50 e mais anos – e está em risco de ser corrida, por outra, arfante para lhe ocupar os lugares.

A maioria absoluta de Sócrates está cheia de ex-qualquer coisa, ele próprio ex-jota do PSD. Não adviria muito mal ao mundo, acaso as convicções fundamentais não tivessem sido por eles abandonadas. Justificam-se com a admissão de que o mundo mudou. Mudou, e aceleradamente, é verdade. Como também verdade é o facto de ninguém do Poder demonstrar qualquer interesse em enfrentar os problemas novos que despontam diariamente: a receita tem sido sempre a mesma.

O esvaziamento da sociedade, como entidade cívica, não tem encontrado resposta em nenhum sector. Da política ao jornalismo, da educação à justiça, da saúde à segurança, da literatura ao cinema, do teatro às artes plásticas, as coisas vão de mal a pior. E, no entanto, há uma apetência pelo “novo”, pelo espírito de missão, pelo diálogo cultural entre gerações, totalmente inaproveitada. O paradoxo da situação consiste, por exemplo, no seguinte: tanto na Imprensa, como nas Rádios e nas Televisões há excelentes profissionais – então, porque é que o resultado é tão mau?

A crítica ao “proteccionismo” de Estado, tão em moda nos editorialistas timbrados no “esquerdismo”, não encontra equivalente na crítica ao domínio do “mercado.” A realidade histórica da globalização (ou seja: a vitória planetária do capitalismo) não representa uma infalibilidade fatal. Uma outra inflexão, não tão subterrânea quanto se possa considerar, nasce do desassossego nascido da própria natureza da globalização. A dimensão política da crítica é, por enquanto, escassa, mas determinante porque o seu eixo está fixado no sofrimento dos dominados. Esta é a questão principal proposta aos partidos de Esquerda, sobretudo, como agora, no PS, que dispõe de confortável maioria. Contudo, onde estão os textos teóricos?, as discussões fundamentais e fundamentadas?, a doutrina que espelhe a inquietação intelectual, ética e ideológica?

A década de Cavaco exerceu o poder baseado num economicismo serôdio. Uma Direita ressabiada e rancorosa aliara-se a homens novos, recém-saídos de uma adolescência prolongada, e aplicaram ao País as teses conservadoras e, até, reaccionárias, tão bem aceitas pela nossa cultura rural. O PSD nunca foi social-democrata; assim como o PS, de socialismo, nem o mais leve cheiro. E o curioso é que nenhum dos dirigentes, antigos, modernos ou actuais de qualquer daqueles partidos experimenta algum sentimento de culpabilidade moral.

A circunstância de obter maioria absoluta não legitima nenhum partido a tripudiar sobre as normas democráticas mais rudimentares. Recusar a ouvir o outro é alarmante sintoma de autoritarismo. Há quem goste. Assim como há comentadores sem perigo que condenam, com árduos adjectivos, a indignação da rua. A rua pode ser, em democracia como em ditadura, a forma superior do protesto colectivo inconformado. A rua é a mais solene e grave das advertências ao Poder, quando o Poder, mesmo democraticamente eleito, quase se traveste de tirania.

Remato, tomando de mão o conceito de D. Francisco Manuel de Melo, cujo quarto centenário do nascimento passa em Novembro: “Desenganos de mau sabor é necessário tomá-los em hora de bom gosto.”

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