Opinião
O padre e o poeta, por igual homens
Naquele dia de 1964, em São Paulo (Brasil), tinha três encontros, impossíveis de desmarcar. Com o capitão Henrique Galvão, nas Galerias Farsano; com Manuel Sertório, no bar do Macsud, e com Miguel Urbano Rodrigues, na redacção de "O Estado de São...
Naquele dia de 1964, em São Paulo (Brasil), tinha três encontros, impossíveis de desmarcar. Com o capitão Henrique Galvão, nas Galerias Farsano; com Manuel Sertório, no bar do Macsud, e com Miguel Urbano Rodrigues, na redacção de "O Estado de São Paulo." Galvão queria prestar-me umas informações sobre os exilados portugueses; Sertório, entregar-me uns documentos que confiaria a alguém, na "Seara Nova", quando regressasse a Lisboa; quanto ao Miguel desejava, apenas, abraçar um velho amigo, também ele homiziado e politicamente muito activo.
A história da Resistência portuguesa ao fascismo está pejada de pequenas incidências, de maior ou menor responsabilidade, mas sempre perigosas. Fiz o que tinha a fazer, e fui ver do Miguel Urbano Rodrigues. Ele era o mais importante editorialista de "O Estadão"; animava o jornal "Portugal Democrático", o mais animoso órgão da Oposição no estrangeiro ao regime salazarista; e escrevia num idioma de primeira água. Assim que me viu disse logo: "Morreu em Cabo Verde o Daniel Filipe!" Dias depois, no jornal onde trabalhava, publicou um artigo notável, "Daniel Filipe, Cronista sem Coluna", retrato implacável da existência portuguesa sob o salazarismo.
Curiosamente, estes episódios emergiram-me na memória, conectados com um livro, "Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação" de um outro exilado do interior, o Padre Mário de Oliveira.
É um documento notável, através do qual o autor prossegue a velha luta de clarificação da humanidade de Jesus contra o filisteismo da sua pretendida divindade. Mário de Oliveira, que, durante a guerra colonial, foi preso pela PIDE, e punido pela hierarquia, pelo singelo facto de se opor à carnificina em África, dispara para todos os lados, com a argumentação, teoria e o assombroso poder de reflexão que o tornaram numa voz tão lúcida quanto extremamente incómoda para os poderes constituídos.
O volume, extenso e vário, documenta largos períodos do Portugal contemporâneo, com um poder analítico invulgar. A Igreja e os seus jerarcas (são notáveis as interpelações que faz, por exemplo, a D. Manuel Clemente, actual bispo do Porto); os políticos e as suas mentiras; a sociedade e as suas resignações; os que escrevem e aquilo que ocultam - eis alguns dos temas fulcrais deste livro.
Tal como Daniel Filipe, grande poeta, Mário de Oliveira não se sentiria bem na sua pele acaso resolvesse calar-se. "A cobardia de quem cala não é o consentimento de quem admite; é a demissão de quem declarou a sua própria falência como ser humano", escreveu, certo dia, para um de nós, o admirável autor de "A Invenção do Amor" e "Pátria, Lugar de Exílio". Daniel, como Mário, servia-se das palavras para protestar, para se equacionar como homem e como cidadão.
O poeta, como o sacerdote, não pode eximir-se das questões da cidade. Ambos, como os seus trabalhos, os seus talentos e as suas reflexões, antagonizavam-se com Platão, o qual desmerecia aqueles que participavam na "polis".
Enquanto Mário procura a exemplaridade de Jesus, Daniel Filipe, mais agnóstico do que ateu, procurava respostas para as suas infinitas interrogações. E, também como Mário, Daniel frequentava a Bíblia (o Evangelho de João era o texto imprescindível dos dois) com o cuidado de quem gosta da grande poesia. Mas ambos interrogavam e continuam a interrogar. Não há morte, por muito absurda que seja (e a morte de Daniel Filipe, com 39 anos e o fígado destruído, foi a mais absurda de todas as mortes) que pare ou interrompa as incertezas e as perguntas do espírito humano. Vamos aos livros antigos na esperança de encontrar, senão soluções, pelo menos lenitivos para as nossas comuns perplexidades. Creio que este novo livro de Mário de Oliveira continua essa longa questão que o homem continua a formular através dos séculos e nos séculos adiante.
Todos os livros são devedores de outros livros, porque a cultura é um ininterrupto diálogo que se pede emprestado. Se este "Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação" constitui um manual de reflexões sobre o tempo e a época, não deixe de representar um indicador filosófico e histórico absolutamente indispensável. Folheá-lo com lentidão, lê-lo com curiosidade activa, compulsá-lo para aferir dos nossos próprios pensamentos, eis uma tarefa estimulante.
Trabalhei com o Padre Mário de Oliveira no jornal de Braga, "Correio do Minho", cuja redacção era dirigida por Artur Queiroz, homem de pena temível e coração aberto. E trabalhei com Daniel Filipe num gabinete de imprensa, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, que a generosidade de Avellar Soeiro, então chefe de Relações Públicas naquela instituição, fizera que fôssemos contratados, numa época (1960) em que eu e ele estávamos desempregados. A solidariedade, então uma palavra não vazia de sentido, tornou o árido assunto do betão e afins num facto jornalístico de audiência. Os nossos camaradas de todos os jornais, repito: de todos os jornais, sabendo da melindrosa situação minha e do Daniel Filipe, alargavam os textos de molde a torná-los visíveis do leitor.
O volume de Mário de Oliveira reafirma, de certo modo, o primado do humano sobre os idólatras, e a grandeza do homem em todas as circunstâncias.
b.bastos@netcabo.pt
A história da Resistência portuguesa ao fascismo está pejada de pequenas incidências, de maior ou menor responsabilidade, mas sempre perigosas. Fiz o que tinha a fazer, e fui ver do Miguel Urbano Rodrigues. Ele era o mais importante editorialista de "O Estadão"; animava o jornal "Portugal Democrático", o mais animoso órgão da Oposição no estrangeiro ao regime salazarista; e escrevia num idioma de primeira água. Assim que me viu disse logo: "Morreu em Cabo Verde o Daniel Filipe!" Dias depois, no jornal onde trabalhava, publicou um artigo notável, "Daniel Filipe, Cronista sem Coluna", retrato implacável da existência portuguesa sob o salazarismo.
É um documento notável, através do qual o autor prossegue a velha luta de clarificação da humanidade de Jesus contra o filisteismo da sua pretendida divindade. Mário de Oliveira, que, durante a guerra colonial, foi preso pela PIDE, e punido pela hierarquia, pelo singelo facto de se opor à carnificina em África, dispara para todos os lados, com a argumentação, teoria e o assombroso poder de reflexão que o tornaram numa voz tão lúcida quanto extremamente incómoda para os poderes constituídos.
O volume, extenso e vário, documenta largos períodos do Portugal contemporâneo, com um poder analítico invulgar. A Igreja e os seus jerarcas (são notáveis as interpelações que faz, por exemplo, a D. Manuel Clemente, actual bispo do Porto); os políticos e as suas mentiras; a sociedade e as suas resignações; os que escrevem e aquilo que ocultam - eis alguns dos temas fulcrais deste livro.
Tal como Daniel Filipe, grande poeta, Mário de Oliveira não se sentiria bem na sua pele acaso resolvesse calar-se. "A cobardia de quem cala não é o consentimento de quem admite; é a demissão de quem declarou a sua própria falência como ser humano", escreveu, certo dia, para um de nós, o admirável autor de "A Invenção do Amor" e "Pátria, Lugar de Exílio". Daniel, como Mário, servia-se das palavras para protestar, para se equacionar como homem e como cidadão.
O poeta, como o sacerdote, não pode eximir-se das questões da cidade. Ambos, como os seus trabalhos, os seus talentos e as suas reflexões, antagonizavam-se com Platão, o qual desmerecia aqueles que participavam na "polis".
Enquanto Mário procura a exemplaridade de Jesus, Daniel Filipe, mais agnóstico do que ateu, procurava respostas para as suas infinitas interrogações. E, também como Mário, Daniel frequentava a Bíblia (o Evangelho de João era o texto imprescindível dos dois) com o cuidado de quem gosta da grande poesia. Mas ambos interrogavam e continuam a interrogar. Não há morte, por muito absurda que seja (e a morte de Daniel Filipe, com 39 anos e o fígado destruído, foi a mais absurda de todas as mortes) que pare ou interrompa as incertezas e as perguntas do espírito humano. Vamos aos livros antigos na esperança de encontrar, senão soluções, pelo menos lenitivos para as nossas comuns perplexidades. Creio que este novo livro de Mário de Oliveira continua essa longa questão que o homem continua a formular através dos séculos e nos séculos adiante.
Todos os livros são devedores de outros livros, porque a cultura é um ininterrupto diálogo que se pede emprestado. Se este "Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação" constitui um manual de reflexões sobre o tempo e a época, não deixe de representar um indicador filosófico e histórico absolutamente indispensável. Folheá-lo com lentidão, lê-lo com curiosidade activa, compulsá-lo para aferir dos nossos próprios pensamentos, eis uma tarefa estimulante.
Trabalhei com o Padre Mário de Oliveira no jornal de Braga, "Correio do Minho", cuja redacção era dirigida por Artur Queiroz, homem de pena temível e coração aberto. E trabalhei com Daniel Filipe num gabinete de imprensa, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, que a generosidade de Avellar Soeiro, então chefe de Relações Públicas naquela instituição, fizera que fôssemos contratados, numa época (1960) em que eu e ele estávamos desempregados. A solidariedade, então uma palavra não vazia de sentido, tornou o árido assunto do betão e afins num facto jornalístico de audiência. Os nossos camaradas de todos os jornais, repito: de todos os jornais, sabendo da melindrosa situação minha e do Daniel Filipe, alargavam os textos de molde a torná-los visíveis do leitor.
O volume de Mário de Oliveira reafirma, de certo modo, o primado do humano sobre os idólatras, e a grandeza do homem em todas as circunstâncias.
b.bastos@netcabo.pt
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