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08 de Fevereiro de 2008 às 15:17

O Padre António Vieira e a força da palavra

Salazar consumia, a redigir os seus discursos, nunca mais de quarenta horas e nunca menos de 36. Quando lhe escasseavam as palavras, manuseava os "Sermões" do Padre António Vieira, uma das suas leituras estremecidas, a par das de Manuel Bernardes. O ditad

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Salazar consumia, a redigir os seus discursos, nunca mais de quarenta horas e nunca menos de 36. Quando lhe escasseavam as palavras, manuseava os "Sermões" do Padre António Vieira, uma das suas leituras estremecidas, a par das de Manuel Bernardes. O ditador improvisava mal e porcamente. Mas escrevia com elegância.

Augusto de Castro, diplomata e director do "Diário de Notícias", simpatizante eficiente do regime, murmurava que Salazar era demasiadamente influenciado pela retórica de Vieira. "Por vezes, a influência era tamanha que plagiava o Mestre, no lançamento da locução e, até, na vigilância da ideia", segundo a rude afirmação de Rodrigues Lapa.

O que abonava em favor do tirano, diga-se de passagem. Faz falta o estudo linguístico das afinidades estilísticas entre muitos dos grandes clássicos com muitos dos escritores portugueses. Não falo nos actuais: pouco ou nada têm a ver com essa vigilância fundamental, que corresponde ao diálogo que se pede emprestado aos que fundaram a nossa literatura e conferiram, à pátria, a sua mais nobre e digna fisionomia.

Sabe-se, pois, que Salazar era leitor, de mão diurna e nocturna, do famoso Padre. Porém, era-lhe antagónico no progressismo, na luta pela liberdade e contra os déspotas e os opressores. Vieira pagou bem caro esse gosto e essa verticalidade moral. A Inquisição mordeu-lhe as canelas e ele sacudiu-lhes a dentuça com a firmeza da razão e a coragem da palavra. Faz imensa falta, aos políticos portugueses que por aí andam, a leitura de António Vieira.

Há quatro séculos que o homem nasceu. Viveu 89 anos inquietos e inquietantes, dos quais dedicou mais de vinte a bolear os sermões que proferia dos púlpitos, a limar as esquírolas das frases, na procura obstina de uma perfeição que (segundo ele próprio dizia) lhe "escapava com afã."

Há dias, no Centro Cultural de Belém, e a convite de António Mega Ferreira, fui ler um excerto do "Sermão de Santo António aos Peixes." Um excerto, porque mais seria fastidioso para quem ouvia e extremamente fatigante para quem o iria ler. Outros camaradas de escrita disseram os textos previamente por si escolhidos.

Uma sessão agradável para mim, sobretudo por escutar os outros e reavivar a memória do grande Vieira, mas, igualmente, por me lembrar de um excelso professor que me ministrou o prazer da leitura dos antigos. Chamava-se Emílio Menezes, goês, gramático, homem de bem e de inexcedível paciência para com os alunos, a maioria procedente dos bairros pobres, de famílias pobres. Recupero uma das frases do professor Menezes: "Vão gostar de António Vieira, porque ele fala de vocês, sem que directamente se vos dirija." É uma síntese admirável.

Ao contrário do que se tem dito, o Padre não é um Quixote nem um antiherói. Ele sabe muito bem o que quer e a quem se dirige. Conhece, como poucos, o seu tempo, e os perigos que enfrenta. Basta ler as biografias a ele consagradas por Hernâni Cidade ou João Lúcio de Azevedo, para se compreender a extraordinária dimensão da sua existência e da sua obra. Utiliza a metáfora e a analogia para escapar ao varejo dos inquisidores e dos bufos. Tal qual os melhores de nós (e os mais apetrechados culturalmente) o fizeram, para driblar o olho desorbitado das censuras.

O "Sermão da Sexagésima", outro prodígio de beleza literária e de argúcia temática, institui a dúvida, condena a dogmática, provoca a reflexão, interpela a duvidosa omnipotência dos homens e a omnipresença de Deus. "Se a palavra de Deus é tão eficaz e poderosa, como vemos tão pouco o fruto da palavra de Deus?", interrogava-se, e aos outros, no século XVII, tempo de assombros, de superstições, de sombras e de ameaças.

E é, ou não, aplicável à nossa época estas frases, lacradas com a leveza do espírito e a elegância do verbo? - "Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração são necessárias obras" ou, ainda, esta: A restituição do respeito é muito mais dificultosa do que a do dinheiro."

Não duvido de que, neste tempo português, o efeito António Vieira fosse apodado de "populista", "demagogo", "excessivo", "incontinente", "ansioso de protagonismo", "exacerbado" - e outros agitados epítetos desqualificantes, aliás nas últimas semanas dirigidos, por exemplo, ao bastonário da Ordem dos Advogados (tomando, naturalmente, as comparações com todos os cuidados e toda a prudência devidos), cujas declarações sobressaltam as bem-pensâncias nacionais.

Vieira faz-nos crer no fabuloso, na possibilidade do aparentemente impossível porque acredita numa "sociedade sã de homens tementes, gratos, mas pensantes e árduos." Ele põe em causa a secularização das coisas, tidas e aceitas como imutáveis e indiscutíveis. Combate a escravatura, coloca-se ao lado dos índios, verberando, em frases de uma beleza incomum, o latrocínio e o genocídio.

Ele conclama a razão contra o "nada", porque se admite o "nada" como uma espécie de impunidade. O Padre reafirma que não. O "nada" não obedece ao império da verdade. O "nada" é a justificação dos amos para dominarem os mandados. E os mandados "são criaturas de Deus, com alma e coração, com amor e com mente." Ele contraria as "evidências abstractas", opondo-lhes o verbo dos argumentos, a experiência transformada em consciência.

No "Sermão de Santo António aos Peixes", ei-lo que esclarece: "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se os pequenos comerem os grandes, bastará um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."

No Padre António Vieira restabelece-se e reafirma-se a força poderosa da palavra que, mesmo ameaçada, é livre - porque o é e sempre será.

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