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O marketing e a política

Os actores da nova política, treinados por especialistas, spin doctors e consultores de imagem, vêem no marketing político um admirável mundo novo de oportunidades de sucesso instantâneo, daquelas a que os media e o povo aderem alegremente.

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1. Nunca como hoje a política pura e dura se teve de confrontar com artes comunicacionais, fórmulas publicitárias e dispositivos de marketing tão apurados. Os espíritos mais clássicos desconfiam de todas estas técnicas de raiz comercial, por as considerarem supérfluas e enganadoras, repletas de manhas e truques para que não foram formados. Mas os actores da nova política, treinados por especialistas, spin doctors e consultores de imagem, vêem no marketing político um admirável mundo novo de oportunidades de sucesso instantâneo, daquelas a que os media e o povo aderem alegremente. São boas notícias para os comunicadores natos e os bons estrategos, mas também o são para os que fazem do populismo a sua arma, desvirtuando a boa política.

Acontece que nada disto é propriamente novo. As artes e manhas comunicacionais, publicitárias e quejandas são velhas como o mundo. Desde a Antiguidade que os políticos - e os dirigentes, de um modo geral - utilizam uma panóplia de técnicas e artifícios, tanto de substância como de forma, para se sobreporem aos adversários e convencerem as multidões. O marketing, pessoal e institucional, sempre existiu, tem atravessado todos os tempos e regimes. Nas democracias, sempre primaram os tribunos mais eficazes no verbo e os líderes mais convincentes aos olhos do povo.

O que o século XX trouxe de verdadeiramente novo à arte da política foi a caixa negra que revolucionou o mundo - a televisão. Pela primeira vez, os políticos tinham de se explicar, em directo, perante milhões de espectadores. Mais: tinham de o fazer segundo as regras das estações televisivas e não segundo as suas. Desde então, nenhum político de primeira linha deixou de poder descurar a sua imagem pessoal, passando a dedicar-lhe mais tempo e atenção. Na história recente, serão certamente raros os exemplos de dirigentes políticos totalmente indiferentes às preocupações de imagem e eficácia comunicacional. De cor, só me consigo lembrar do doutor Salazar. Nem o doutor Pacheco Pereira, que tanto se esforça para parecer o contrário, consegue ser convincente.

Na verdade, muitos dos líderes ocidentais do pós-guerra foram acima de tudo excelentes comunicadores. De Gaulle, Krutchov, Brandt, Palme, Thatcher, González ou Blair são exemplos incontestáveis, a que alguns lusitanos se poderiam certamente juntar (Sá Carneiro, Mário Soares, António Guterres). Do outro lado do Atlântico, Kennedy e Clinton, os dois melhores presidentes norte-americanos do pós-guerra, eram verdadeiros «monstros mediáticos», na habitual expressão das agências publicitárias. Daqui parece poder retirar-se uma conclusão tranquilizadora - a qualidade não é inimiga dos dotes comunicacionais. Duvido porém que consiga conviver com a superficialidade das revistas mundanas e a obsessão pelo gesto.

Onde o marketing político e os seus artífices se podem revelar especialmente nocivos para a cultura democrática é no jogo perverso e imediatista que introduzem na relação entre governantes, media e eleitorado. Por mais respeito intelectual que os spin doctors possam merecer, convém ter-se presente que a sua função é a de condicionar os fluxos de informação por forma a criar uma atmosfera mediática favorável aos interesses dos governos. Será certamente um trabalho estimulante (como já ouvi a Peter Mandelson, agora comissário europeu), mas duvido que o seu output vá no sentido do interesse público, tal como desconfio da teia de relações jornalísticas e sociais que, de forma opaca, alimentam e utilizam com mestria.

2. O incidente aéreo nos céus açorianos, ocorrido na sexta-feira passada, dominou durante dias o espaço informativo. Recapitulemos: não houve vítimas nem danos materiais, os procedimentos foram todos cumpridos, os mecanismos automáticos agiram na hora certa. Tudo ocorreu dentro da normalidade possível, excepto o facto de se encontrar a bordo do avião da TAP um membro do governo, por acaso ministro da agricultura. Razão bastante para ser entrevistado longamente pela RTP sobre questões técnicas e outros detalhes do mergulho aéreo. Nos dias que se seguiram, foi a nomeação da comissão de inquérito, o envio das caixas negras para França e as longas horas dedicadas pelo ministro António Mexia ao «problema» (quantos anos terá de dedicar aos dossiês verdadeiramente importantes?). Bem sei que a silly season ainda não acabou e os spin doctors se encontram a banhos. Mas, com franqueza, não haveria outro tema para trabalhar? Ou será que, pelo contrário, os spin doctors já regressaram de férias e cheios de força?

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