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Opinião
19 de Junho de 2006 às 13:59

O lado negro da força

Não, os milhões de leitores desta coluna podem descansar! Não irei ocupar este espaço para filosofar sobre a luz de Obi-Wan Kenobi e a escuridão de Darth Vader, a eterna luta entre o bem e o mal ou, em versão western anos 60, entre cowboys e índios, muito

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Mas venho falar de pessoas, isso venho. O que não é fácil, pois com esta confusão toda que por aí vai, distinguir os good guys dos bad guys não é tarefa para qualquer um.

Na Europa dos finais do século XIX princípios do século XX, o velho paradigma taylorista, confirmou o que toda a gente já sabia, que uns nasciam para mandar, outros para obedecer.

Em 1917, na pré-URSS, afinal todos mandavam e todos obedeciam e, ao mesmo tempo, ninguém mandava nem ninguém obedecia, situação algo paradoxal que Vladimir Ilich pragmatizou rapidamente com as vanguardas esclarecidas.

Em 1974, na Lusolândia, não se percebia bem quem mandava ou quem obedecia, mas pelo menos toda a gente se divertia. Toda não, acho que p’raí uma dúzia não gostou particularmente de alguns pequeníssimos erros de percurso, ínfimos mesmo, que foram cometidos.

Em 1989, para as bandas de Berlim, o mundo mudou e a democracia parlamentar entrou pela Europa central e oriental qual tsunami político-social e toda a gente recebeu uma arma sob a forma de um voto com licença para fazer o que quisesse dele. Até votar.

No virar do século, temos finalmente o grande irmão e tio Sam de olho paternal em todos nós, castigando quem prevarica, premiando quem colabora (ou será ao contrário?, mas adiante que esta conversa pode estar a ser gravada).

Para que toda a gente saiba o que comer, o que vestir (não conto aqui aquele par de biliões de pessoas que não têm estas preocupações, aliás apenas querem sobreviver até amanhã), o que cantar, o que ler (ler?), em resumo, tornar toda a gente mais igualzinha, teve início a partir dos anos 60 um movimento de gradual multinacionalização das empresas que definiu um novo contexto económico-social a que se chamou e chama Globalização.

A divisão do trabalho modificou-se, como se modificaram as relações entre os factores de produção; sucederam-se os movimentos de fusões e aquisições; cresceram os movimentos de concentração, verticais e laterais; multiplicaram-se as deslocalizações de unidades produtivas em busca de pastagens mais verdes, custos de produção mais atractivos, novas fronteiras de mercados, novas tecnologias, novos subsídios à produção, perdão, à formação, enfim, procurando novos mundos para o mundo.

Todo este processo deu origem a profunda agitação nos meios académicos e empresariais, uns procurando as formulações teóricas que enquadrassem as forças da mudança, outros tentando compreender essa mudança, tirar partido das suas potencialidades e precaver-se contra os predadores que sempre surgem nestes momentos de viragem.

Este novo jogo produziu uma infindável colecção de ferramentas de apoio à decisão em todas as fases do ciclo da gestão, desde o planeamento à arquitectura organizacional, passando pelos mistérios comportamentais dos recursos humanos e terminando na sempre incompreendida avaliação do desempenho pessoal e institucional.

Abrindo essa toolbox, clicando na secção planeamento estratégico, retiremos uma das ferramentas, conhecida em português por outsourcing, para analisar um pouco mais detalhadamente a sua natureza e âmbito.

Este instrumento responde à questão se, do ponto de vista da criação de valor para a empresa, será preferível internalizar ou externalizar determinada função. Ou seja, conter determinada função no âmbito da actividade da empresa ou adquirir esse serviço a fornecedor externo. Rapidamente as empresas perceberam que podiam melhorar os seus níveis de competitividade sub-empreitando áreas de trabalho que claramente eram acessórias ao core business. Serviços de limpeza, refeitórios, segurança e manutenção, entre outros, foram as primeiras componentes a ser separadas do organograma funcional, típico da larga maioria das empresas. Algumas passaram a chamar-se unidades transversais ou partilhadas, assumindo ou não personalidade jurídica. Outras quebraram totalmente a exclusividade umbilical com a sua origem e partiram à conquista de novos clientes e até novos mercados. Acentuou-se a noção de que a responsabilidade dos quadros principais das empresas vai para além do seu pequeno «castelo» funcional, mas sim partes essenciais e solidárias de um todo empresarial. Simplificando, têm que ser primeiro gestores e depois chefes disto ou daquilo.

Até aqui tudo bem. Tecidos adiposos devem ser queimados no altar da competitividade, a produtividade dos factores de produção deve ser o livro de mesa de cabeceira de empregados e empregadores. Um win-win game.

Qual é, então, o problema?

O problema chama-se Contexto. Contexto de dignidade e solidariedade em que tudo pode e deve ser feito.

Voltando ao outsourcing, o seu âmbito de aplicação tem vindo a alargar-se a sectores que até há pouco tempo eram considerados não só estratégicos mas os verdadeiros motores de desenvolvimento empresarial. Refiro-me, claro, às pessoas. Não, naturalmente, ao trabalho de caracter temporário há muito oferecido por empresas especializadas e bem conhecidas no mercado. Mas aos trabalhadores em geral, técnicos e administrativos, de baixo, médio ou alto nível organizacional, e a postos de trabalho que à partida revestem feição de permanentes. Não permanentes para a vida, que isso felizmente já foi, mas tipicamente permanentes.

A história podia ser hipoteticamente assim:

Era uma vez uma pessoa que respondeu a um anúncio de oferta de emprego; foi entrevistada em determinada empresa e aceite a candidatura; o dia para assinatura do contrato de trabalho, o qual pode ser semestral, anual ou sem qualquer termo, foi marcado. Nesse dia, algo surpreendido, o candidato verifica que está a assinar um contrato com uma empresa qualquer de 5º andar, com nome normalmente estrangeiro, e não com aquela com quem se desenrolou o processo de admissão. Porque precisa do trabalho e porque não quer dar a entender que não percebe bem estas modernices, para além do facto de que não lhe é oferecida alternativa, assina. Podia, é verdade, não assinar.

Seis meses a um ano depois, a dita empresa de 5º andar desapareceu e a relação contratual é transposta para outra empresa com nome estrangeiro, esta de 4º andar. Mais seis meses a um ano e a cena repete-se. Ah, entretanto o empregado continua a desempenhar as funções para que foi contratado na «verdadeira» empresa, em posto de trabalho regular e continuado. Outros detalhes se poderiam acrescentar para telenovelizar a história, mas não vale a pena, esta situação é metafórica e qualquer parecença com casos reais é pura coincidência (ou será ao contrário?, mas adiante que imaginar é preciso).

Abramos uma última vez a toolbox, clicando na secção Visão, Missão e Valores, e retiremos outra ferramenta, conhecida em português por Ética e Responsabilidade Social, para tentar analisar a sua relação com a metáfora que atrás contamos. Um pormenor curioso que saltou à vista quando pegámos nesta ferramenta era o seu brilho, como se tivesse sido recente e intensamente manipulada.

Parece que alguma coisa não faz sentido.

A metáfora acima, a ser verdadeira, leva-nos a concluir que temos o paradigma taylorista revisitado, uns lifts aqui e ali feitos na oficina de Chicago, mas Taylor no essencial, sendo as pessoas um simples custo variável de produção que, como tal, devem ser tratadas.

Responsabilidade Social e Ética neste cenário é, no mínimo, paradoxal e a ferramenta deveria apresentar-se ferrugenta pela falta de uso. Convenhamos, esta hipótese é má de mais para ser verdade.

Se a metáfora acima não passa no detector de mentiras, as pessoas são pessoas e tratadas como tal, com dignidade e solidariedade, mas também com exigência e rigor, então aplicam-se integralmente os princípios de Ética e Responsabilidade Social e o brilho da respectiva ferramenta decorre de uso e prática corrente. Convenhamos, esta hipótese é boa de mais para ser verdade.

Bem, há uma terceira hipótese (porque é que há sempre uma terceira hipótese?) que me atrai particularmente e que resolve o dilema que apresentei.

Fazemos assim: (i) promovemos as pessoas, não já de repente a pessoas, para não ferir alguma susceptibilidade, além de que elas próprias desconfiariam da esmola, mas a projecto de investimento, isso mesmo, a Pessoas-Projecto (PPs, entre colegas); (ii) discutimos e definimos objectivos para cada pessoa; (iii) dotamos cada pessoa dos recursos físicos e formativos necessários ao desempenho das suas funções; (iv) avaliamos o seu desempenho de forma tão justa quanto possível e (v) finalmente, premiamo-la ou penalizamo-la segundo critérios previamente conhecidos e aceites. Do ciclo vicioso ao ciclo virtuoso.

Um detalhe final, esta terceira via teria de ser aplicada a todos os escalões hierárquicos da empresa.

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