Opinião
O gelo da história
A peleja para as Presidenciais relevou da crise da Esquerda – e da Direita, impreparadas ou com cediços discursos. Ambas são incapazes de redefinir a vida portuguesa em comum, porque as suas diferenças são, averiguadamente, inexistentes.
Estamos cada vez mais pobres. Portugal é o território, na Península Ibérica, onde pior se vive. Depois de vinte anos de subsídios comunitários estamos na cauda de todas as caudas. Quase 500 mil portugueses no desemprego, entre os quais 41 mil licenciados. A desertificação do interior acentua-se. Burocratizam a tecnociência. As despesas destinadas, pelo Orçamento, à cultura, à educação e à investigação, são absurdas por tão escassas. Portugal corporiza a crise da ideia de progresso, projectado para um destino cada vez mais indecifrável. E, creiam, não é o dr. Cavaco que vai tirar-nos do atoleiro.
Economicamente vivemos um desastre. Culturalmente, uma hecatombe. Socialmente, somos anémicos. Politicamente, néscios. Os melhores de nós emigram. E não, somente, jovens trabalhadores, sovados pelas injustiças, amargurados por um futuro turvo. Cientistas, intelectuais, investigadores, professores, matemáticos, físicos viram as costas a uma «pátria madrasta, país padrasto», para recuperar o pungente dizer do grande João de Barros, o de «As Décadas».
As somas vultuosíssimas que sucessivos Governos receberam, durante praticamente vinte anos, volatilizaram-se. Fizeram-se fortunas, de procedência duvidosa. As falências fraudulentas feriram de angústia milhares e milhares de trabalhadores. Ninguém foi preso. Não é mentira nem embuste: as maiores quantidades de fundos da União foram entregues durante o período cavaquista. Mas Guterres e os que lhe advieram são igualmente culpados. Nenhum deles está à altura das nossas exigências, como povo e como História.
Ao demonstrado esgotamento do capitalismo contemporâneo e do Estado-providência, na forma como actualmente se apresenta, há uma ausência total de respostas alternativas. Nos debates para a Presidência da República nenhum dos candidatos fez a reproblematização das relações do Estado com o mercado e a sociedade. Esperava-se mais do dr. Cavaco. Ou não? Expôs, uma vez ainda, as suas carências, insistindo num economicismo anacrónico, e na patranha de conseguir, se Presidente, uma relação totalmente modificada entre todos os sectores de actividade.
Portugal vai receber, durante o próximo septénio, 3 214 milhões de euros por ano. Informa, grave, o ‘Público’: «mais de seis mil euros por minuto, 367 mil euros por hora, 8,8 milhões por dia». Os apoios ao desenvolvimento, para o qual os fundos estruturais se destinam terão a Ota e o TGV como «prioridades» fundamentais? Estes problemas foram abordados de leve ou, simplesmente, não o foram pelos candidatos.
A experiência governamental portuguesa induz ao pessimismo. O mundo mudou e deixou de existir a fronteira entre a possibilidade e a utopia. Perante a negação dos valores que escoraram as esperanças de gerações e gerações, emerge uma hierarquia de medíocres que não elimina a infelicidade humana, porque não compreende que essa infelicidade decorre das péssimas condições sociais e políticas. E a mundialização do mercado ameaça as conquistas sociais das democracias europeias, fazendo emergir, novamente, a barbárie, no sentido atribuído por Walter Benjamin: civilizacional, psíquico e moral.
A peleja para as Presidenciais relevou da crise da Esquerda - e da Direita, impreparadas ou com cediços discursos. Ambas são incapazes de redefinir a vida portuguesa em comum, porque as suas diferenças são, averiguadamente, inexistentes. Segundo parece, estamos condenados ao gelo da História.
APOSTILA 1 - A todos os Dilectos, sem excepção, um caloroso abraço de Boas Festas. E, se me permitem, reimprimo um pequeno belíssimo texto, enviado por uma leitora: «Queremos um mundo em que as pessoas trabalharão para viver em vez de viverem para trabalhar; os economistas não chamarão nível de vida ao nível do consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas; os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas; os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos; nas ruas os carros serão atropelados pelos cães; a comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos; serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma».
APOSTILA 2 - Esclareço um pio leitor do seguinte: nunca fui director do «Diário de Notícias». Creio, aliás, ter sido o único jornalista e escritor a condenar, publicamente, os saneamentos naquele jornal, facto sempre referido pelo meu velho amigo João Coito, na altura chefe de Redacção do matutino. Nem podia ser de outra forma: eu próprio fui saneado, várias vezes, pela singela circunstância de possuir convicções. Adianto: posso estar em total desacordo com alguém, mas sempre me bati para que quem quer que seja torne sempre pública sua opinião.