Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

O discurso do absurdo

Votar é importante; mas nós somos mais importantes do que o voto. Temos sido enganados porque, no fundo, retraímos a nossa indignação perante a indignidade dos governantes. Além do voto, pequeno quadrado de papel no qual fizemos recair a responsabilidade

  • ...

Além do voto, pequeno quadrado de papel no qual fizemos recair a responsabilidade da nossa escolha, há outros poderes, um dos quais o do civismo, espécie de honra que marca um destino e pode alterar o futuro das coisas. O voto não é gratuito, nem para o votante nem para o votado. E é bom não esquecer o poder de que dispomos para modificar erros, desmandos e hipocrisias.

A cidadania inventa-se, cria-se todos os dias. É preciso que a saibamos sentir. Para senti-la é necessário que formemos a nossa consciência através da experiência adquirida. E a nossa consciência determina o grau de esperança que devemos admitir como razoável. O pior que nos podem fazer é privar-nos da esperança. Eis o que, na verdade, nos têm feito.

Na Feira do Livro de Lisboa, durante uma sessão de autógrafos, António Costa foi cumprimentar-me. Não vou cometer a indelicadeza de contar um episódio privado: ele foi público e, até, filmado pelas televisões; simplesmente, creio não ter sido exibido. Cumprimentei o candidato à Câmara de Lisboa, com amabilidade e cortesia. Ele, dirigindo-se-me e à comitiva: "O Baptista-Bastos está muito zangado comigo". Tive de lhe responder: "Contigo e com o Governo que representas. Razão de sobejo para não votar em ti". Soube, depois, que alguns da companhia socialista teriam dito que José Sá Fernandes era o meu eleito. Não é nenhum deles. Cansei-me de ser enganado.

Quando Mário Soares declara que "o Governo tem de mudar de rumo"; Manuel Alegre afirma que não "sabe que PS é este"; Helena Roseta sai a bater com a porta, e Alberto Martins, líder (raio de palavra!) da bancada do PS, enche a boca com aquela fraude da "Esquerda moderna", para falar na "reforma do Parlamento", aí, as coisas são mesmo sobressaltantes. Entretanto, o austero historiador Rui Ramos num grave artigo editado no "Público", ensina solenemente a Esquerda a mudar de leitura: "Talvez ajudasse ter lido mais Mill (sic) [John Stuart Mill, filósofo e economista ingês (1806-1873)]e menos Marx, e ler agora mais Nick Cohen e menos Chomsky". O artigo é "ilustrado" com uma fotografia de Soares e Louçã.  Ramos lavra num equívoco: a Esquerda deveria, acaso, ler Marx e Chomsky, demonstradamente ignorados, e, também, Mill e o "colunista" Cohen. Além desses, muitos outros mais. Acontece um porém: se a Esquerda lê unilateralmente, a Direita também sofre de graves evanescências culturais.

Mário Lino defende, tenazmente, a Ota; Francisco Van Zeller, da CIP, pleiteia por Alcochete; Rui Moreira, presidente da Associação Comercial Portuense, anuncia que vai apresentar outro projecto, o Portela + 1; e a esmagadora maioria dos portugueses, eu incluído, nada sabe - a não ser que a confusão se transformou numa força definitiva.

Estudo os comentadores, ouço os debates, leio as notícias, tento decifrar o que os políticos ocultam nas promessas ininterruptas. Somos mais importantes do que o voto  -  insisto. E cada vez mais me inclino para a ideia de que o Parlamento (este Parlamento) não é a "casa da democracia", frase fatela também usada por Alberto Martins. Nós, todos nós, à Direita e à Esquerda, é que somos essa casa, porque fomos nós que a construímos. Os limites pressupostos na frase de Martins introduzem, involuntariamente, uma concepção de relativismo, como se a Assembleia da República constituísse uma espécie de princípio "intemporal" e indiscutível. Tudo isto releva do discurso do absurdo.

No caso da escolha do novo aeroporto, que interesses estão envolvidos? Não creio que nenhum dos intervenientes tenha sido tocado pela "bondade patriótica". No caso de Lisboa a reticência mantém-se. Em ambos os casos mantenho, há anos, amizades, que as diferenças ideológicas e filosóficas nunca foram sequer beliscadas. E devo acrescentar que ninguém é imaculado: nem eu, nem Santo Agostinho, como é sabido.

Há algo de insensato na discussão pública dos interesses nacionais. Os políticos presumem que desaparecem por detrás das suas vozes; mas não: as pessoas reconhecem essas redes absurdas de metáforas reabilitadas dos mais cediços compêndios dos poderes antigos. A linguagem deles não estabelece a harmonia nas relações humanas. Foram tocados pela varinha mágica da bem-aventurança pessoal. Seria particularmente instrutivo proceder-se a uma vistoria sobre os percursos de centenas e centenas de "políticos", logo-assim "abandonam" o Parlamento, os ministérios, as secretarias de Estado. Dir-se-á: tem sido sempre assim. Há duas hipóteses: ou usamos a força cívica de que dispomos, mas só raramente utilizada, para alterar, substancialmente, esta pouca-vergonha; ou, então, acomodemo-nos à ideia de que, mais tarde ou mais cedo, emergirá das brumas um salvador da pátria.

O "consciente moral", de que falava Walter Benjamin, não indica um instante de epifania, nem de recurso à utopia interpretada como esperança vã. Benjamin sabia, como poucos, que moral e política não se conciliam, e que a história é uma deusa cega. Contudo, advertia ser necessária uma nova interpretação dos factos, à luz dos acontecimentos nascidos da guerra que devastava a Europa. A Esquerda não compreendeu os sinais. Porque nunca os discutiu, ou recusou discuti-los, no confronto "moral" que, por exemplo, Camus e Merleau-Ponty haviam proposto. A cisão entre Camus e Sartre é um dos momentos mais dramáticos na história do pensamento europeu. E o recurso que a Direita costuma fazer a Raymond Aron, na tentativa de solver o problema, é por de mais infantil para que o tomemos a sério.

Evidentemente, reflectir exige o respaldo da cultura, da informação e da leitura permanente. A política, enquanto tal, é a busca assídua de situar o homem na sua época e não de libertar o homem do tempo. Esta última tarefa compete às religiões. O caso português não é diferente do que se passa no resto do mundo. Adianto, até, que, no curto espaço de três décadas, caminhámos muito mais depressa do que outras nações, onde a liberdade e a democracia estão assentes, desde há longuíssimos anos. Assentes, mas não consolidadas. Lembremo-nos dos casos alemão e francês: da República de Weimar, e da Frente Popular.

A democracia e a liberdade reconhecem-se no progressivo sentido da História. Os nossos dirigentes, à Esquerda e à Direita, têm, de facto, encarnado esse princípio? Duvido muito.

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio