Opinião
O administrador que sabia demais
A reunião do Conselho de Administração já ia longa.
Depois de um almoço bem regado, Manuel, administrador e accionista, debatia-se com uma sonolência fora do comum, tentando desesperadamente manter a pestana aberta – ele que era um homem de pestana aberta. Os temas desfilavam, trazendo banalidade atrás de banalidade: já se havia discutido a eliminação do café gratuito, no âmbito da nova política de redução de custos, e os administradores preparavam-se para atacar sofregamente o tema do fornecedor a seleccionar para substituir o mobiliário («velho» de três anos) que ornamentava as suas salas.
O Presidente impacientava-se – tinham passado quase toda amanhã a discutir a alteração da política de viaturas, por forma a contemplar a possibilidade dos administradores adquirirem carros desportivos.
O Presidente estava farto daqueles tipos, que, de uma forma ou de outra, lhe haviam sido impingidos: um genro de figura pública da cor do Governo, um filho de político na oposição, um pato bravo da construção civil, dono de importante fatia do capital, e um banqueiro, louco por brasileiras, que para além de accionista era também responsável por grande parte dos empréstimos concedidos à Empresa.
«Senhores, penso que querem sair a tempo de ir ver o jogo. Comecemos por discutir o tema da aquisição da ABC e, se tivermos tempo, abordaremos depois o tema da aquisição do novo mobiliário» – parecia que a paciência se havia esgotado.
Manuel, que quase cabeceava, despertou repentinamente com as palavras do homem à cabeceira da mesa e olhou para o seu Audemars Piguet Royal Oak Concept, que marcava 16h. Muito conhecido no meio imobiliário por adivinhar com frequência quais as zonas com maior potencial de valorização na cidade – tarefa que desenvolvia junto de alguns indignos representantes da classe política e que lhe custava os olhos da cara – Manuel preparava-se agora, correndo outro tipo de riscos (porque passava da corrupção activa para a alçada do Código dos Valores Mobiliários), para dar o mesmo tipo de golpe a nível do mercado financeiro. «Sou todo ouvidos» – pensou.
O Presidente inicia então a sua intervenção - «Vou ler-vos o texto que enviaremos amanhã para as autoridades financeiras e onde, basicamente, diremos que assinamos um Memo of Understanding para aquisição de 51% da compra da ABC, por 100 milhões de euros». A sala enche-se agora de aplausos, comentando-se em surdina o excelente valor de aquisição. Manuel começa a retorcer-se na cadeira, não conseguindo esconder uma súbita (e inexistente) vontade de fazer chichi.
O Presidente continua – «Os nossos assessores financeiros estimam que o valor das acções possa subir até 30%, logo após o anúncio deste excelente negócio». Tinha valido a pena infiltrar um antigo director da Empresa na ABC, três anos antes – na altura, simulando um despedimento e utilizando uma manobra de diversão centrada em torno do pagamento de uma indemnização escandalosamente faustosa.
O telefone toca na Sala do Conselho, interrompendo o discurso. O Presidente atende...
Na outra ponta da mesa, Manuel toma umas notas com a sua Visconti Alhambra, levanta-se subitamente, invocando uma imprevisível necessidade fisiológica, e aproveita a interrupção para sair. Pega no telemóvel, enquanto se dirige para a casa de banho. Tenta ligá-lo e nada. «Provavelmente está sem bateria» – pensa. Desce à segunda cave, abre a porta do seu Mercedes 300 SL Gullwing (comprado em segunda mão a um tipo de Cascais que havia herdado esta preciosidade e que a deixara partir para conseguir suportar as despesas de manutenção com a sua última conquista amorosa) e tira outro telemóvel. Sobe apressadamente, entra na casa de banho e marca um número. Verifica que não tem sinal. «Deve ser da camada de mármore» – conclui. Percorre os corredores à procura de um sítio recatado. Descobre a porta entreaberta de uma sala e entra. Está calor, mas encontra sinal. Liga a uma prima afastada que para ele é como se fosse sua irmã. A situação é explicada em poucos segundos, mas com o máximo de detalhes, e termina com uma indicação muito clara – «Compras cem mil acções até a um máximo de seis euros; despacha-te que a Bolsa está quase a fechar». Explica-lhe, depois, a quem ela se deve dirigir para executar essa ordem, fornecendo-lhe o número particular de um velho amigo seu, e, antes de desligar, termina a conversa lembrando a prima de que não se esqueceu de que «tem que fazer a folha» ao tipo que, ambos sabem, andou a aproveitar-se dela...
Dentro das tubagens do ar condicionado, Mário, empregado da manutenção, mal acredita no que acaba de ouvir. Espera que Manuel saia, deixa-se deslizar pelas condutas, caindo desamparado sobre o tapete persa, e pega no primeiro telefone que encontra...
Manuel regressa à Sala do Conselho, depois de uma calma e relaxante passagem pelo bar – eram 16h25m. Notou, sem perceber porquê, que o ambiente era agora de grande consternação. Discutia-se o que deveria dizer-se aos jornalistas que dentro de alguns minutos iriam cercar a porta principal da Empresa. Como é que tinha sido possível ocorrer tal acidente? «Como é que durante mais de 15 anos não ocorrera um único problema de qualidade de produção e agora, no preciso momento em que se aprestavam para fechar o negócio com a ABC, aparecem estes lotes contaminados que intoxicam dezenas de pessoas e congelam completamente o negócio?» – interrogava-se o Presidente.
Manuel não quer acreditar. Sente uma sensação de vertigem que termina com palidez e suores frios.Volta a sair da sala. Liga para a prima. O telefone está interrompido. Desespera. Volta a tentar – está interrompido! Encaminha-se para o bar, resolvido a beber até esquecer.
O telemóvel toca. É a prima! Antes de ter tempo para dizer alguma coisa, ela irrompe num choro desesperado – «Não consegui dar a ordem; o palhaço do teu empregado que faz manutenção aí no edifício da Empresa telefonou-me a pedir desculpa pelo seu comportamento; não consegui evitar e disse-lhe das boas; quando dei por mim, já era tarde; desculpa, sei que fiz asneira da grossa».
«Não fizeste não, minha querida, não fizeste não» – responde Manuel, com aquela convicção já antiga de que era um pato (bravo) com sete vidas.