Opinião
30 de Janeiro de 2020 às 09:36
O início de um Estado “panótico” que tudo vê
A lei permite que os organismos públicos partilhem os nossos dados pessoais e os usem com objetivos diferentes dos da sua recolha inicial.
Em 1785 o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham prometeu revolucionar o sistema prisional com a sua construção panótica. A designação com raízes etimológicas na palavra grega "panoptes", significa "tudo ver", e transporta-nos inevitavelmente, para a figura de Argos Panoptes, um gigante mitológico, a quem atribuíam a característica de ter todo o corpo, coberto por atentos olhos, que o capacitavam de uma visão ilimitada.
A prisão idealizada por Bentham dispunha os reclusos em celas individuais ao redor de um torreão central de vigia, permitindo que um único guarda, posicionado no epicentro do edifício, beneficiasse de uma vista desimpedida para o interior de cada uma das celas, enquanto uma forte luz que irradiava do torreão encadeava a curiosidade dos prisioneiros, impedindo-os de conseguirem ver para o seu interior.
Este privilegio que a arquitetura de Bentham concedia aos guardas de observar sem serem vistos fazia com que os reclusos nunca soubessem, realmente, quando é que estavam a ser vigiados.
Constantemente assombrados pela incerteza relativamente à verdadeira dimensão da sua privacidade, os prisioneiros eram constrangidos a comportarem-se, por precaução e defeito, como se estivessem sempre debaixo do olhar atento do guarda do torreão central. O edifício idealizado por Bentham assentava no conhecimento de que o ser humano altera o seu comportamento, quando sabe que está a ser observado ou quando suspeita que pode estar a ser objeto de escrutínio.
A ideia da construção panótica foi recuperada 200 anos mais tarde por Foucault, para ilustrar os efeitos dos mecanismos de controlo social e alertar para o advento da "sociedade disciplinar", asfixiada pela determinação desmedida do Estado na elaboração de regras e pela implementação massiva de mecanismos de vigilância dos seus cidadãos.
Portugal não ficou imune às ideias de Bentham conforme revela o projeto original do Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, um dos raríssimos exemplos panóticos erguidos pelo mundo. Infelizmente, a vontade de "tudo ver" não ficou circunscrita aos residentes dos hospitais e estabelecimentos prisionais, nem aos projetos e planos daqueles edifícios.
Recentemente, escondido no texto da lei de execução do Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Parlamento decidiu incluir um artigo que atribui ao Estado as mitológicas capacidades do gigante Argos Panoptes: a possibilidade de tudo conseguir ver relativamente aos seus cidadãos. A lei passou a permitir que os organismos públicos partilhem entre si os nossos dados pessoais e os usem com objetivos e para finalidades diferentes, daquelas que justificaram a sua recolha inicial, bastando para tal que demonstrem existir um qualquer "interesse público".
Nada impede assim que, por exemplo, o Estado crie uma gigante entidade pública central e que para essa entidade transfira toda a informação recolhida sobre cada um de nós, aglomerando, por exemplo, a imensidão de dados que a Autoridade Tributária tem com os dados recolhidos nos centros de saúde, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, Segurança Social, Registo Criminal, câmaras municipais e juntas de freguesias e, com base nestes dados, preveja comportamentos, crie perfis de cidadãos ou tome decisões, com evidentes prejuízos para os nossos direitos.
Contra todos os pareceres da Comissão Nacional de Proteção de Dados, o projeto tem vindo silenciosamente a ganhar dimensão, prevendo inclusivamente o Orçamento do Estado de 2020 novas possibilidades de acessos e trocas de informações entre bases de dados de serviços públicos e entidades do setor privado e social.
Todo este contexto de manifesta falta de transparência, associado ao crescente investimento que o Estado tem vindo a fazer em sistemas de análise de big data, passando pela batalha travada junto do Tribunal Constitucional para aceder aos metadados dos cidadãos, e a constante desconsideração dos pareceres da CNPD deixam antever que a nossa privacidade não será uma prioridade.
Assim, na semana em que se celebrou [a 28 de janeiro] o Dia Europeu da Proteção de Dados, não deverá ser esquecido o crescente apetite que os Estados têm vindo a demonstrar relativamente aos nossos dados.
A criação de um gigante Argos Panoptes estadual que concentre todos os nossos dados pessoais deveria preocupar qualquer um, até porque, como nos ensinou o caso Edward Snowden, o conceito de "interesse público", além de vago e indeterminado, tende a ter a elasticidade suficiente que os Estados procuram, para nele acolher, os menos públicos interesses.
A prisão idealizada por Bentham dispunha os reclusos em celas individuais ao redor de um torreão central de vigia, permitindo que um único guarda, posicionado no epicentro do edifício, beneficiasse de uma vista desimpedida para o interior de cada uma das celas, enquanto uma forte luz que irradiava do torreão encadeava a curiosidade dos prisioneiros, impedindo-os de conseguirem ver para o seu interior.
Constantemente assombrados pela incerteza relativamente à verdadeira dimensão da sua privacidade, os prisioneiros eram constrangidos a comportarem-se, por precaução e defeito, como se estivessem sempre debaixo do olhar atento do guarda do torreão central. O edifício idealizado por Bentham assentava no conhecimento de que o ser humano altera o seu comportamento, quando sabe que está a ser observado ou quando suspeita que pode estar a ser objeto de escrutínio.
A ideia da construção panótica foi recuperada 200 anos mais tarde por Foucault, para ilustrar os efeitos dos mecanismos de controlo social e alertar para o advento da "sociedade disciplinar", asfixiada pela determinação desmedida do Estado na elaboração de regras e pela implementação massiva de mecanismos de vigilância dos seus cidadãos.
Portugal não ficou imune às ideias de Bentham conforme revela o projeto original do Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, um dos raríssimos exemplos panóticos erguidos pelo mundo. Infelizmente, a vontade de "tudo ver" não ficou circunscrita aos residentes dos hospitais e estabelecimentos prisionais, nem aos projetos e planos daqueles edifícios.
Recentemente, escondido no texto da lei de execução do Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Parlamento decidiu incluir um artigo que atribui ao Estado as mitológicas capacidades do gigante Argos Panoptes: a possibilidade de tudo conseguir ver relativamente aos seus cidadãos. A lei passou a permitir que os organismos públicos partilhem entre si os nossos dados pessoais e os usem com objetivos e para finalidades diferentes, daquelas que justificaram a sua recolha inicial, bastando para tal que demonstrem existir um qualquer "interesse público".
Nada impede assim que, por exemplo, o Estado crie uma gigante entidade pública central e que para essa entidade transfira toda a informação recolhida sobre cada um de nós, aglomerando, por exemplo, a imensidão de dados que a Autoridade Tributária tem com os dados recolhidos nos centros de saúde, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, Segurança Social, Registo Criminal, câmaras municipais e juntas de freguesias e, com base nestes dados, preveja comportamentos, crie perfis de cidadãos ou tome decisões, com evidentes prejuízos para os nossos direitos.
Contra todos os pareceres da Comissão Nacional de Proteção de Dados, o projeto tem vindo silenciosamente a ganhar dimensão, prevendo inclusivamente o Orçamento do Estado de 2020 novas possibilidades de acessos e trocas de informações entre bases de dados de serviços públicos e entidades do setor privado e social.
Todo este contexto de manifesta falta de transparência, associado ao crescente investimento que o Estado tem vindo a fazer em sistemas de análise de big data, passando pela batalha travada junto do Tribunal Constitucional para aceder aos metadados dos cidadãos, e a constante desconsideração dos pareceres da CNPD deixam antever que a nossa privacidade não será uma prioridade.
Assim, na semana em que se celebrou [a 28 de janeiro] o Dia Europeu da Proteção de Dados, não deverá ser esquecido o crescente apetite que os Estados têm vindo a demonstrar relativamente aos nossos dados.
A criação de um gigante Argos Panoptes estadual que concentre todos os nossos dados pessoais deveria preocupar qualquer um, até porque, como nos ensinou o caso Edward Snowden, o conceito de "interesse público", além de vago e indeterminado, tende a ter a elasticidade suficiente que os Estados procuram, para nele acolher, os menos públicos interesses.