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Novo retrato

Para quem vê os filmes de ficção científica para lá da prestação dos actores, da trama e dos efeitos especiais, não pode ter deixado de reparar na enorme decepção que invariavelmente os mesmos representam em dois domínios bem específicos.

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Na cultura e nas relações sociais. De facto, decoração, design, arquitectura, arte e guarda-roupa, por mais extravagantes que possam parecer, remetem sem excepção para o já visto e numa maioria dos casos para formas de revivalismo abstruso. Pior ainda acontece na organização social e política. Geralmente o futuro, e tantas vezes um futuro exageradamente longínquo, é povoado por imperadores, reis e rainhas e sua corte de nobres, em sistemas próprios do absolutismo e da tirania.

Isto deve-se em parte a preconceitos ideológicos, mas acima de tudo a uma dificuldade em representar o novo. Ou seja, se alguém souber realmente como é a arte do futuro ou a sociedade do futuro, não faz simplesmente filmes futuristas mas sim a arte e a política do nosso tempo. É neste sentido que o filme Blade Runner, de 1982, marcou claramente uma diferença, já que mais do que divagar sobre pseudo-futuros, introduziu no tempo próprio algumas questões actuais sobre o pós-humano, a clonagem, a inteligência artificial ou a vida artificial. Para ser inovador não precisou de inventar nada, bastou-lhe tratar de alguns dos temas mais avançados do presente.

Serve isto para introduzir aquela que é seguramente a problemática mais interessante do Portugal de hoje. Como pode este país representar o choque tecnológico que se apresenta como grande aposta do próximo governo e que suscita um tão vasto consenso junto das elites económicas, culturais e políticas?

Os estudos demonstram que não basta inundar a comunidade de novas tecnologias. A chamada sociedade da informação que assenta na criação de redes de distribuição, livre e acelerada, de todo o tipo de mensagens, pode não significar muito quando aquilo que circula é banal, desinteressante e obsoleto. Ou pior, quando a acumulação de informações não significa qualquer mudança de comportamentos. E estes não dependem das tecnologias mas do avanço cultural dos próprios indivíduos e organizações.

Isto é, a representação de um choque tecnológico tem menos a ver com a visualização das tecnologias e sim com a maneira como a sociedade se faz representar na sua relação com essas tecnologias.

Ora, a imagem que prevalece de nós mesmos continua a remeter, quase exclusivamente, para dois grandes conteúdos. O passado e a pequenez. Dou um exemplo. Na actual exposição Mundial de Aichi, no Japão, Portugal é representado da seguinte forma. Som do mar, fotografias do cabo da Roca e da ilha do Pico, cortiça, chão de xisto, um sobreiro e uma réplica dos Painéis de São Vicente, tudo acompanhado de gastronomia portuguesa. Será que o país, apesar de tudo, não tem nada de actual para mostrar e se remete pela milésima vez aos descobrimentos? Não se trata só de falta de imaginação, mas de uma anacrónica cultura da identidade portuguesa que se encontra entranhada nos poderes públicos e nos próprios criativos. No fundo desde a exposição do Mundo Português, nos anos 40, que Portugal, apesar da democracia, da Internet e do novo milénio, é representado exactamente da mesma maneira. Descobrimentos, folclore e chouriços.

Da mesma forma, apesar de alguns meritórios esforços isolados, o país continua a ser visto preferencialmente nas televisões e nos restantes media, pelas couves de três metros, pelo decadentismo folclórico e em geral por tradições sem qualquer fundamento nem sentido. O domínio da promoção turística é particularmente aberrante já que não consegue passar do burro algarvio ou das sete saias das peixeiras da Nazaré.

É por isso que um dos maiores desafios que se coloca à estratégia de propagação do choque tecnológico, diz respeito à representação do país, ou seja à imagem que fazemos de nós mesmos. Ao invés de recorrer sempre ao passado, seria necessário dar visibilidade ao presente. Existe um Portugal avançado que inexplicavelmente tem sido mantido na penumbra. É urgente torná-lo visível, porque isso em muito ajudaria a mudar mentalidades, comportamentos e objectivos de vida em particular para os mais jovens.

Enfim, Portugal precisa de tirar um novo retrato. Mais contemporâneo e actualizado. E por isso inovador.

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