Opinião
Mais vale prudência que ciência
Um dos factores de incerteza para o ano de 2012 relaciona-se com a efectivação de alguns dos compromissos políticos assumidos na cimeira de chefes de Estado europeus de dezembro. Esta breve nota retoma o tema das regras orçamentais.
Um dos factores de incerteza para o ano de 2012 relaciona-se com a efectivação de alguns dos compromissos políticos assumidos na cimeira de chefes de Estado europeus de dezembro. Esta breve nota retoma o tema das regras orçamentais.
A revisão do mecanismo de supervisão orçamental da União Europeia (UE) resulta das deficiências detectadas no Pacto de Estabilidade e Crescimento em assegurar a sustentabilidade das finanças públicas, ao nível da avaliação e comunicação atempada dos riscos e das consequências práticas dessas iniciativas. Nesse sentido, a Comissão Europeia propôs um novo pacto orçamental, com efeito dissuasório acrescido através de sanções mais abrangentes e da transposição para lei "fundamental" ou equivalente nos ordenamentos jurídicos nacionais de regras orçamentais.
O comunicado da cimeira de dezembro menciona, especificamente, duas regras: uma sobre o défice público, impondo, por norma, um défice estrutural anual que não exceda 0,5% do PIB, cumulativamente com sanções automáticas caso o défice exceda os 3% do PIB (acção preventiva); outra sobre a dívida pública, instituindo uma redução de 1/20 em termos anuais da diferença entre o valor da dívida e o valor de referência de 60% do PIB (acção correctiva). Três breves reflexões sobre estas regras.
A primeira é que as regras orçamentais por si só não asseguram a sustentabilidade das contas públicas. As regras contidas no Pacto de Estabilidade e Crescimento foram insuficientes para evitar a situação atual de grave desequilíbrio das contas públicas. Tomando como referência o índice das regras orçamentais compilado pela Comissão Europeia (sintetiza 5 dimensões da importância de regras orçamentais em cada país) não se identifica uma associação forte entre intensidade das regras orçamentais nos ordenamentos jurídicos nacionais e a condição das finanças públicas. Por exemplo, Espanha apresenta um valor índice substancialmente mais elevado do que a Áustria, e o índice finlandês tem vindo a descer ao longo dos últimos dez anos registando actualmente valores inferiores à média dos países da UE. Todavia, na Áustria e na Finlândia as finanças públicas apresentam valores equilibrados e registam-se notações de rating soberano elevadas. Exemplos simples de como, também nestas matérias, a substância parece dominar a forma.
A segunda relaciona-se com o grau de exigência que as regras poderão implicar. Embora seja incorrecto fazê-lo porque num quadro regulamentar diferente, mas, se se tomar como referência a história das finanças públicas dos estados europeus no período 1999-2010, constata-se que apenas 6 dos 27 países da UE cumpriram em mais de metade do tempo com a regra do défice estrutural e 13 países nunca o fizeram, sendo um deles Portugal. Se se suavizar a regra para um défice estrutural primário, isto é, excluindo os juros de dívida pública, a situação apresenta-se mais favorável: 12 países cumpriram o critério em mais de metade dos anos corridos, havendo apenas três países que nunca o fizeram. Portugal apenas cumpriu este critério menos restritivo em dois dos 12 anos aqui considerados. No programa de ajustamento em curso para Portugal, que constitui uma situação de emergência e atípica, o défice estrutural projectado é de 1,3% do PIB em média para o período 2013-2015 (cerca do triplo do valor proposto).
Curiosamente, o comunicado da cimeira difere das propostas da Comissão em dois pontos: a Comissão propôs que a regra avaliasse a variação do saldo e não o valor do saldo orçamental estrutural (nesse critério, o incumprimento seria relativamente incomum) de par com uma regra cumulativa sobre a variação da despesa, de forma a mitigar problemas de défice por rigidez de despesa nas fases adversas do ciclo económico.
Do lado da regra sobre a redução da dívida, as exigências não são menores. Dados os níveis atingidos pela dívida pública na maioria dos estados membros, a proposta de uma redução de 1/20 do diferencial do rácio da dívida face ao objectivo dos 60% do PIB, que encontra a sua racionalidade na compatibilização entre défices de 3% e rácios de dívida de 60% num determinado pressuposto de crescimento nominal das economias, num quadro diferente do actual, também não se afigura fácil. Implica ajustamentos orçamentais muito penosos para os países com níveis de dívida elevados nos primeiros anos de aplicação da regra. Cálculos grosseiros sugerem saldos orçamentais primários para Portugal de quase o dobro do que está previsto nas simulações do FMI para o período subsequente a 2014 (o cenário do FMI admite uma dívida de 70% do PIB em 2030 enquanto que a aplicação da regra proposta colocaria este rácio em 60% no mesmo período). Destes exemplos ressalta a severidade das regras propostas.
A terceira e última reflexão decorre das anteriores. O FMI, num estudo de 2009, favorece a prática de regras orçamentais mas menciona alguns elementos a ponderar na sua aplicação: o estímulo à criatividade para as excepções e formas de contornar as regras (por exemplo, a contabilidade criativa ou a desorçamentação); a insensibilidade das regras quanto à qualidade das decisões orçamentais; a adequação ao contexto económico e financeiro vigente sabendo-se da pro-ciclicidade implícita na aplicação das regras; e a credibilidade da política económica, conjugando o compromisso político sobre a disciplina orçamental com períodos de transição e apertos orçamentais realistas, em particular em contextos económicos incertos e de consolidação orçamental intensa, definição que se aplica ao tempo presente.
O objectivo das regras orçamentais é contribuir para a reposição de trajectórias de sustentabilidade das contas públicas, contributo que resulta da visibilidade dada aos riscos orçamentais e da pressão sobre os decisores que a visibilidade e sanções acessórias possibilitam. A credibilidade do quadro institucional e político é determinante. As deficiências detectadas justificam a reforma do mecanismo de supervisão orçamental da UE mas resultaria quase paradoxal que tal esforço resultasse diminuído pela impraticabilidade de algumas das regras propostas.
Gabinete de Estudos do Millennium BCP
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A revisão do mecanismo de supervisão orçamental da União Europeia (UE) resulta das deficiências detectadas no Pacto de Estabilidade e Crescimento em assegurar a sustentabilidade das finanças públicas, ao nível da avaliação e comunicação atempada dos riscos e das consequências práticas dessas iniciativas. Nesse sentido, a Comissão Europeia propôs um novo pacto orçamental, com efeito dissuasório acrescido através de sanções mais abrangentes e da transposição para lei "fundamental" ou equivalente nos ordenamentos jurídicos nacionais de regras orçamentais.
A primeira é que as regras orçamentais por si só não asseguram a sustentabilidade das contas públicas. As regras contidas no Pacto de Estabilidade e Crescimento foram insuficientes para evitar a situação atual de grave desequilíbrio das contas públicas. Tomando como referência o índice das regras orçamentais compilado pela Comissão Europeia (sintetiza 5 dimensões da importância de regras orçamentais em cada país) não se identifica uma associação forte entre intensidade das regras orçamentais nos ordenamentos jurídicos nacionais e a condição das finanças públicas. Por exemplo, Espanha apresenta um valor índice substancialmente mais elevado do que a Áustria, e o índice finlandês tem vindo a descer ao longo dos últimos dez anos registando actualmente valores inferiores à média dos países da UE. Todavia, na Áustria e na Finlândia as finanças públicas apresentam valores equilibrados e registam-se notações de rating soberano elevadas. Exemplos simples de como, também nestas matérias, a substância parece dominar a forma.
A segunda relaciona-se com o grau de exigência que as regras poderão implicar. Embora seja incorrecto fazê-lo porque num quadro regulamentar diferente, mas, se se tomar como referência a história das finanças públicas dos estados europeus no período 1999-2010, constata-se que apenas 6 dos 27 países da UE cumpriram em mais de metade do tempo com a regra do défice estrutural e 13 países nunca o fizeram, sendo um deles Portugal. Se se suavizar a regra para um défice estrutural primário, isto é, excluindo os juros de dívida pública, a situação apresenta-se mais favorável: 12 países cumpriram o critério em mais de metade dos anos corridos, havendo apenas três países que nunca o fizeram. Portugal apenas cumpriu este critério menos restritivo em dois dos 12 anos aqui considerados. No programa de ajustamento em curso para Portugal, que constitui uma situação de emergência e atípica, o défice estrutural projectado é de 1,3% do PIB em média para o período 2013-2015 (cerca do triplo do valor proposto).
Curiosamente, o comunicado da cimeira difere das propostas da Comissão em dois pontos: a Comissão propôs que a regra avaliasse a variação do saldo e não o valor do saldo orçamental estrutural (nesse critério, o incumprimento seria relativamente incomum) de par com uma regra cumulativa sobre a variação da despesa, de forma a mitigar problemas de défice por rigidez de despesa nas fases adversas do ciclo económico.
Do lado da regra sobre a redução da dívida, as exigências não são menores. Dados os níveis atingidos pela dívida pública na maioria dos estados membros, a proposta de uma redução de 1/20 do diferencial do rácio da dívida face ao objectivo dos 60% do PIB, que encontra a sua racionalidade na compatibilização entre défices de 3% e rácios de dívida de 60% num determinado pressuposto de crescimento nominal das economias, num quadro diferente do actual, também não se afigura fácil. Implica ajustamentos orçamentais muito penosos para os países com níveis de dívida elevados nos primeiros anos de aplicação da regra. Cálculos grosseiros sugerem saldos orçamentais primários para Portugal de quase o dobro do que está previsto nas simulações do FMI para o período subsequente a 2014 (o cenário do FMI admite uma dívida de 70% do PIB em 2030 enquanto que a aplicação da regra proposta colocaria este rácio em 60% no mesmo período). Destes exemplos ressalta a severidade das regras propostas.
A terceira e última reflexão decorre das anteriores. O FMI, num estudo de 2009, favorece a prática de regras orçamentais mas menciona alguns elementos a ponderar na sua aplicação: o estímulo à criatividade para as excepções e formas de contornar as regras (por exemplo, a contabilidade criativa ou a desorçamentação); a insensibilidade das regras quanto à qualidade das decisões orçamentais; a adequação ao contexto económico e financeiro vigente sabendo-se da pro-ciclicidade implícita na aplicação das regras; e a credibilidade da política económica, conjugando o compromisso político sobre a disciplina orçamental com períodos de transição e apertos orçamentais realistas, em particular em contextos económicos incertos e de consolidação orçamental intensa, definição que se aplica ao tempo presente.
O objectivo das regras orçamentais é contribuir para a reposição de trajectórias de sustentabilidade das contas públicas, contributo que resulta da visibilidade dada aos riscos orçamentais e da pressão sobre os decisores que a visibilidade e sanções acessórias possibilitam. A credibilidade do quadro institucional e político é determinante. As deficiências detectadas justificam a reforma do mecanismo de supervisão orçamental da UE mas resultaria quase paradoxal que tal esforço resultasse diminuído pela impraticabilidade de algumas das regras propostas.
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