Opinião
Já não há heróis na ponte sobre o rio Kwai
Ao assobio da velha marcha do coronel Bogey leva-se pouco mais de três horas no comboio que vai de Banguecoque até Kanchanaburi. É o roteiro inevitável para chegar ao rio Khwae Yai, à ponte da Linha da Morte e aos museus e cemitérios da guerra que começou
Lá chegando, vir-se-á a saber que, após tanta morte sofrida, um comboio transportando mulheres forçadas à prostituição em bordéis militares japoneses foi o primeiro a cruzar a ponte de madeira em Fevereiro de 1943.
Dois anos depois a ponte da linha ferroviária que ligava a Tailândia à Birmânia foi destruída num bombardeamento aliado e aqui se finou o esforço de guerra japonês que, após humilhar a Grã-Bretanha em Singapura, chegou, através da Indochina, a ameaçar o Raj que imperava na Índia.
A construção da Linha da Morte, iniciada em Setembro de 1942, custou a vida a 100 mil trabalhadores forçados tailandeses, birmaneses e outros coolies oriundos das actuais terras da Malásia e Indonésia, e massacrou, ainda, 16 mil prisioneiros aliados, na maioria britânicos, holandeses, franceses e australianos.
Na primeira semana de Dezembro, fogos- -de-artifício celebram o bombardeamento aliado que, em 1945, destruiu a ponte sobre o Khawe Yai.
Um guia tailandês evoca, então, para turistas e mais gente, a galhardia desses prisioneiros de guerra que o francês Pierre Boulle romanceou, David Lean filmou para todo o sempre e o assobio retorna floresta adentro.
Em frase feita o guia dirá: "Stiff upper lip, Sir."
Imperturbável a imagem de Alec Guinness irrompe, então, sem que lhe trema a coragem e, na erecta postura de todas as memórias, com sua intrepidez, bravata e insensatez, afronta o rio e o destino.
Um comboio volta a passar, mas já não há heróis na ponte do Khawe Yai.
Das Malvinas a Bassorá
As celebrações dos 25 anos da vitória na última guerra imperial nos confins do Atlântico Sul, nas inóspitas alvinas/Falkland, coincidiram com um momento de humilhação da Grã-Bretanha pela detenção de quinze marinheiros e fuzileiros pelo Irão.
Teerão tem gerido a crise em seu proveito e embaraçado por tabela os Estados Unidos que em Janeiro prenderam cinco iranianos em Irbil, no norte do Iraque. Teerão quer a libertação destes detidos que afirma serem diplomatas em serviço na capital do Curdistão. Washington afirma tratarem-se de agentes subversivos. A troca, impossível de assumir publicamente, destes iranianos pelos militares britânicos será um dos desfechos inevitáveis desta crise. O primeiro indício nesse sentido surgiu, aliás, com a libertação na terça-feira de um diplomata iraniano raptado em Fevereiro, em Bagdade, por homens envergando fardas do exército iraquiano.
A par deste confronto, ofuscado por atentados e uma mortandade selvática no Iraque que condena ao fracasso a derradeira tentativa do Pentágono para estabilizar Bagdad e a província confinante de Anbar, as confissões forçadas dos presos britânicos vão sendo emitidas a conta gotas nas televisões do Irão e no canal de língua árabe que Teerão criou para galvanizar os xiitas iraquianos.
Em Londres, o constrangimento é grande. Em véspera da retirada da maior parte das tropas britânicas do sul do Iraque, as confissões não abonam em termos da moral e estoicismo de que os militares de Sua Majestade fazem gala.
As confissões forçadas não convencem a Ocidente, mas dão que pensar quanto à fibra e capacidade de resistência de militares apanhados numa guerra que para muitos parece ter perdido o sentido.
Vai longe a imagem do homem de armas, pleno de coragem e resistência a toda a prova, sacrificando-se por um estoicismo patriótico que, no mito do rio tailandês, roçava a desmesura. Essa imagem já não faz sentido.
O sequestro tornou-se uma arma cada vez mais efectiva e surge frequentemente associado à humilhação pública e tortura de reféns.
Por vezes, o sequestro surge ligado ao banditismo que se confunde com acções de cariz alegadamente político. Tal parece ser o caso do rapto do jornalista Alan Jonhston. O correspondente da BBC cobria há três anos as guerras de Gaza e desde o rapto a 12 de Março nunca mais houve notícia do paradeiro.
A captura de reféns é prática corrente por parte de árabes e israelitas e causa de grande comoção em Israel que não poucas vezes se viu obrigada a cedências gravosas para recuperar os seus homens. A captura de dois militares israelitas pelo Hizballah foi, também, o pretexto para Telavive lançar a invasão do Líbano no Verão passado. Na frente de Gaza, as arrastadas negociações com milícias palestinianas ainda não levaram à libertação do cabo Gilad Shalit capturado num ataque a um posto israelita em Junho de 2006.
Nesta vertigem de raptos e detenções cirúrgicas não é de admirar que também no Afeganistão os sequestros de estrangeiros sigam imparáveis. Nos primeiros anos após a queda dos Taliban, os sequestrados eram em regra libertados a troco de dinheiro. No mês passado, a guerrilha taliban mudou de estratégia e passou à exigência da troca política. Assim, o jornalista italiano Daniele Mastrogiacomo só foi posto em liberdade depois da soltura de cinco militantes taliban.
A coragem ante a degola
Uma das imagens de marca da chacina que caracteriza estes tempos é a humilhação sistemática dos reféns. Confissões forçadas, apelos desesperados, e o momento da execução que se pretende exemplar e aterradora passaram a táctica reconhecida e praticada para galvanizar apoiantes e atemorizar opositores.
Num dos episódios mais sangrentos esta táctica falhou apenas pelo acto de coragem do jornalista Daniel Pearl que em nove dias de cativeiro em Karachi recusou sujeitar-se à chantagem dos raptores, nunca fazendo qualquer apelo. Na maior parte das situações, porém, poucos reféns conseguem resistir às torturas físicas e psicológicas.
No caso de pessoal militar capturado por forças regulares e, em princípio, salvaguardado pelas disposições da Convenção de Genebra, a cedência às exigências dos captores e, sobretudo, os actos públicos de condenação das políticas seguidas pelos seus estados têm um efeito altamente pernicioso sobre as tropas combatentes.
A opinião pública britânica, maioritariamente oposta ao esforço de guerra no Iraque, poderá, ainda, assumir que estas confissões extorquidas à força, expressam, também, o sem sentido da presença militar no Iraque e os riscos crescentes de um confronto com o Irão.
Mesmo em casos de confronto estado a estado a lição política é simples, mas terrível para quem for apanhado neste terror dos sequestros: ceder à chantagem é dar azo a mal pior e mais horrendo.
No caso do militares britânicos a cedência às exigências de Teerão, ainda que Londres evite uma retratação pública, é um dado adquirido e irá fazer ainda mais mossa na moral das tropas que só aguardam pelo momento da retirada.