Opinião
Ir a Cuba ver a campa de Fidel
Um escaldão de sol e mar, uns travos de sexo, rum, música e arquitectura colonial, Cadillacs dos tempos de Lansky e Capone, além do bónus das ruínas socialistas a preço de saldo, atraíram na última década mais 15 milhões de...
Um escaldão de sol e mar, uns travos de sexo, rum, música e arquitectura colonial, Cadillacs dos tempos de Lansky e Capone, além do bónus das ruínas socialistas a preço de saldo, atraíram na última década mais 15 milhões de europeus e canadianos a Cuba, sem que esta leva turística tenha subvertido o regime castrista.
O efeito de uma nova vaga turística poderá, no entanto, ser diferente, depois de Barack Obama ter autorizado viagens anuais à ilha por parte de norte-americanos de origem cubana (limitadas desde 2004 a deslocações de três em três anos por períodos máximos de duas semanas), enquanto o Congresso se prepara para votar o levantamento da maior parte das interdições de viagem a todos os cidadãos dos Estados Unidos.
Cerca de 130 mil cubano-americanos visitam anualmente a ilha e o novo regime permitirá que 1,5 milhões de cubanos residentes nos Estados Unidos possam solicitar vistos de entrada para contactar familiares.
Turistas e retornados
Para Havana será difícil recusar a maior parte dos pedidos, e controlos policiais acrescidos não conseguirão impedir a multiplicação de contactos entre cubanos dos dois lados do estreito da Florida.
As restrições ao intercâmbio entre cubanos e estrangeiros poderão funcionar com canadianos, britânicos, italianos e franceses, limitar mesmo o contacto de turistas espanhóis (para referir os maiores contingentes entre os 2,35 milhões de visitantes em 2008), mas são inviáveis face aos cubanos-americanos.
Os turistas canadianos e europeus passam, além disso, a maior parte do seu tempo nos hotéis de 4 ou 5 estrelas situados longe dos grandes centros urbanos. Havana, aliás, só conta com cerca de 20 estabelecimentos do género entre os 103 hotéis topo de gama que existem na ilha.
A possibilidade de, a curto prazo, Cuba poder vir a atrair mais de 700 mil turistas norte-americanos por ano, em vez dos cerca de 40 mil que anualmente visitam a ilha, é, por sua vez, prejudicada pela escassez da oferta, apenas 46 mil camas, e o baixo nível dos serviços de hotelaria e restauração.
Para a Cuba dos Castros, mais do que um eventual acréscimo das entradas turísticas com efeitos perniciosos para os costumes e as proclamações de "Pátria ou Morte", o verdadeiro motivo de preocupação centra-se no aumento nas remessas de divisas, medicamentos e bens de consumo por parte dos cubano-americanos, que se tornarão, ainda por cima, uma presença mais constante.
O levantamento de muitas restrições do embargo norte-americano representa, no imediato, um alívio para uma situação económica difícil, mas ameaça corroer a legitimidade ao regime que não consegue oferecer um nível de vida comparável ao que usufrui a maior parte dos cubano-americanos.
O risco que traz o dólar
As remessas de emigrados e seus descendentes ascendem a mil milhões de dólares por ano, segundo as estimativas da Comissão Económica para a América Latina e as Caraíbas da ONU, acrescidas de outros 500 milhões de dólares entrados durante as estadas de visitantes cubanos, e deverão aumentar significativamente, já que a interdição de transferências a favor de quadros do regime é irrelevante.
A entrada de mais dólares acentuará clivagens sociais e pressões inflacionistas numa ilha onde o salário médio dos 11,3 milhões de habitantes ronda os 20 dólares mensais e, a curto prazo, poderá ultrapassar mesmo as receitas do turismo, que se cifraram em 2,7 mil milhões de dólares em 2008.
Os Estados Unidos, por outro lado, são já o quinto parceiro comercial de Cuba e o seu principal fornecedor de produtos agrícolas e alimentares (500 milhões de dólares de vendas no ano passado), apesar de se manter o embargo comercial imposto há 47 anos.
A decisão de passar a permitir contratos entre empresas norte-americanas e entidades cubanas no sector das telecomunicações (ainda que sujeito a autorização governamental por parte de Washington) é outro sinal - para além da vertente política de tentar alargar o acesso dos cubanos a informação não-censurada - de que a prazo as restrições comerciais poderão ser abolidas.
Para Havana, no entanto, o mais urgente seria o apoio de Washington para renegociar a sua dívida externa de 30 mil milhões de dólares, mas na ausência de concessões que ultrapassem a libertação pontual de presos políticos nem a administração, nem o Congresso norte-americanos irão mais longe numa abertura ao regime cubano.
As trocas comerciais com a Venezuela - cerca de 7 mil milhões de dólares anuais, das quais mais metade em subsídios em barris de crude - têm tendência a diminuir e investimentos estrangeiros, designadamente brasileiros, para a exploração de petróleo não compensam a redução da ajuda de Hugo Chávez.
Longe ainda dos níveis de produção e consumo de 1989, depois de findos os subsídios soviéticos, a economia continua sob tutela governamental e as forças armadas detêm o quinhão maior com 90% das exportações e 60% das receitas do turismo por conta de empresas controladas pelo Ministério da Defesa.
O fracasso das medidas adoptadas por Raúl Castro para estimular a produção agrícola, permitindo a exploração privada de baldios, é o exemplo mais claro da ineficácia das reformas económicas que estão longe de criar condições para aproveitar investimentos estrangeiros.
De Mariel ao Mausoléu do comandante
Para o regime castrista, o risco é agora ainda maior do que durante a presidência de James Carter, quando a administração democrata tentou normalizar relações, permitindo nomeadamente as visitas de cubano-americanos à ilha.
Nessa altura, quando Cuba mantinha contingentes militares em Angola e na Etiópia, Carter acabou enredado na crise provocada por Fidel, que, ante uma conjuntura económica gravosa, reagiu promovendo, entre Abril e Outubro de 1980, a fuga em massa de 125 mil indesejáveis para as costas da Florida através do porto de Mariel.
Obama, ao tomar a iniciativa para normalização de relações com Havana, sem colocar de imediato na mesa a exigência de concessões políticas, abriu caminho para uma complicada negociação que irá prosseguir por muito tempo, mesmo depois de turistas e cubano-americanos andarem por Cuba para ver a campa de Fidel.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
O efeito de uma nova vaga turística poderá, no entanto, ser diferente, depois de Barack Obama ter autorizado viagens anuais à ilha por parte de norte-americanos de origem cubana (limitadas desde 2004 a deslocações de três em três anos por períodos máximos de duas semanas), enquanto o Congresso se prepara para votar o levantamento da maior parte das interdições de viagem a todos os cidadãos dos Estados Unidos.
Turistas e retornados
Para Havana será difícil recusar a maior parte dos pedidos, e controlos policiais acrescidos não conseguirão impedir a multiplicação de contactos entre cubanos dos dois lados do estreito da Florida.
As restrições ao intercâmbio entre cubanos e estrangeiros poderão funcionar com canadianos, britânicos, italianos e franceses, limitar mesmo o contacto de turistas espanhóis (para referir os maiores contingentes entre os 2,35 milhões de visitantes em 2008), mas são inviáveis face aos cubanos-americanos.
Os turistas canadianos e europeus passam, além disso, a maior parte do seu tempo nos hotéis de 4 ou 5 estrelas situados longe dos grandes centros urbanos. Havana, aliás, só conta com cerca de 20 estabelecimentos do género entre os 103 hotéis topo de gama que existem na ilha.
A possibilidade de, a curto prazo, Cuba poder vir a atrair mais de 700 mil turistas norte-americanos por ano, em vez dos cerca de 40 mil que anualmente visitam a ilha, é, por sua vez, prejudicada pela escassez da oferta, apenas 46 mil camas, e o baixo nível dos serviços de hotelaria e restauração.
Para a Cuba dos Castros, mais do que um eventual acréscimo das entradas turísticas com efeitos perniciosos para os costumes e as proclamações de "Pátria ou Morte", o verdadeiro motivo de preocupação centra-se no aumento nas remessas de divisas, medicamentos e bens de consumo por parte dos cubano-americanos, que se tornarão, ainda por cima, uma presença mais constante.
O levantamento de muitas restrições do embargo norte-americano representa, no imediato, um alívio para uma situação económica difícil, mas ameaça corroer a legitimidade ao regime que não consegue oferecer um nível de vida comparável ao que usufrui a maior parte dos cubano-americanos.
O risco que traz o dólar
As remessas de emigrados e seus descendentes ascendem a mil milhões de dólares por ano, segundo as estimativas da Comissão Económica para a América Latina e as Caraíbas da ONU, acrescidas de outros 500 milhões de dólares entrados durante as estadas de visitantes cubanos, e deverão aumentar significativamente, já que a interdição de transferências a favor de quadros do regime é irrelevante.
A entrada de mais dólares acentuará clivagens sociais e pressões inflacionistas numa ilha onde o salário médio dos 11,3 milhões de habitantes ronda os 20 dólares mensais e, a curto prazo, poderá ultrapassar mesmo as receitas do turismo, que se cifraram em 2,7 mil milhões de dólares em 2008.
Os Estados Unidos, por outro lado, são já o quinto parceiro comercial de Cuba e o seu principal fornecedor de produtos agrícolas e alimentares (500 milhões de dólares de vendas no ano passado), apesar de se manter o embargo comercial imposto há 47 anos.
A decisão de passar a permitir contratos entre empresas norte-americanas e entidades cubanas no sector das telecomunicações (ainda que sujeito a autorização governamental por parte de Washington) é outro sinal - para além da vertente política de tentar alargar o acesso dos cubanos a informação não-censurada - de que a prazo as restrições comerciais poderão ser abolidas.
Para Havana, no entanto, o mais urgente seria o apoio de Washington para renegociar a sua dívida externa de 30 mil milhões de dólares, mas na ausência de concessões que ultrapassem a libertação pontual de presos políticos nem a administração, nem o Congresso norte-americanos irão mais longe numa abertura ao regime cubano.
As trocas comerciais com a Venezuela - cerca de 7 mil milhões de dólares anuais, das quais mais metade em subsídios em barris de crude - têm tendência a diminuir e investimentos estrangeiros, designadamente brasileiros, para a exploração de petróleo não compensam a redução da ajuda de Hugo Chávez.
Longe ainda dos níveis de produção e consumo de 1989, depois de findos os subsídios soviéticos, a economia continua sob tutela governamental e as forças armadas detêm o quinhão maior com 90% das exportações e 60% das receitas do turismo por conta de empresas controladas pelo Ministério da Defesa.
O fracasso das medidas adoptadas por Raúl Castro para estimular a produção agrícola, permitindo a exploração privada de baldios, é o exemplo mais claro da ineficácia das reformas económicas que estão longe de criar condições para aproveitar investimentos estrangeiros.
De Mariel ao Mausoléu do comandante
Para o regime castrista, o risco é agora ainda maior do que durante a presidência de James Carter, quando a administração democrata tentou normalizar relações, permitindo nomeadamente as visitas de cubano-americanos à ilha.
Nessa altura, quando Cuba mantinha contingentes militares em Angola e na Etiópia, Carter acabou enredado na crise provocada por Fidel, que, ante uma conjuntura económica gravosa, reagiu promovendo, entre Abril e Outubro de 1980, a fuga em massa de 125 mil indesejáveis para as costas da Florida através do porto de Mariel.
Obama, ao tomar a iniciativa para normalização de relações com Havana, sem colocar de imediato na mesa a exigência de concessões políticas, abriu caminho para uma complicada negociação que irá prosseguir por muito tempo, mesmo depois de turistas e cubano-americanos andarem por Cuba para ver a campa de Fidel.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
Mais artigos do Autor
O Estado pirata
25.05.2021
Os desafios da China envelhecida
18.05.2021
A mulher fatal ganha a guerra das ideias
11.05.2021
A “apropriação do Estado” na versão austral
05.05.2021
A corrida às armas na era covid
27.04.2021
Putin responde às sanções de Biden
20.04.2021