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16 de Dezembro de 2005 às 13:59

Ignorância e desespero

Há algo de equívoco nas afirmações do candidato do PSD-CDS. Foi num governo dele que Saramago se viu impedido de participar num importante prémio europeu, o que atribuiu à «imagem de Portugal» um colete de infâmia, de intolerância e de estupidez.

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Segundo parece depreender-se de recentes notícias, o dr. Cavaco foi a Paris. Não para visitar a Cinemateca, deslocar-se ao Louvre, adquirir os famosos «Traités Politiques, Esthétiques, Éthiques», de Baltasar Gracián, ou «La Societé Assiégée», de Zygmunt Bauman. O dr. Cavaco foi a Paris para prometer, à puridade, «recuperar a imagem de Portugal no estrangeiro». Quis, assim, de cabeça alta e a costumeira graciosidade espelhada no rosto, criticar a prosápia e a vilania dos governos que o antecederam - os quais teriam, maldosamente, ofuscado essa imagem. Depois, satisfeitíssimo, tomou o avião e regressou à pátria, por ele considerada «excessivamente deprimida». Claro que também possui remédio e sólidos métodos para extirpar esta atroz maleita.

Há algo de equívoco nas afirmações do candidato do PSD-CDS. Foi num governo dele que Saramago se viu impedido de participar num importante prémio europeu, o que atribuiu à «imagem de Portugal» um colete de infâmia, de intolerância e de estupidez. Enorme chinfrim fez a Imprensa lá de fora. Nessa ocasião, como em outras, o dr. Cavaco, primeiro-ministro, não exautorou nem despediu, como lhe competia, os vigilantes da «cultura» no seu governo: Santana Lopes e Sousa Lara.

O culto da juventude pela juventude atingiu, na década de Cavaco, o requinte de doutrina de governo e de símbolo de «modernidade». É a época na qual é inculcada a concepção da economia como sagrada força de exemplo. Por sistema foram ignorados a educação, o desenvolvimento harmonioso, a aplicação dos modos relativos à natureza das técnicas. A genealogia da amnésia histórica começou a exteriorizar-se, com o apagamento do passado e a remoção daqueles que representavam o espírito do 25 de Abril. Assistiu-se ao aggiornamento de abjurados da extrema-esquerda, promovidos a lugares de decisão. Ressurgiram os velhos mitos patrioteiros e a preponderância do autoritarismo sobre a razão. Bem entendido: não foi Cavaco Silva o autor da teoria: faltam-lhe leitura e reflexão filosóficas, bases culturais e prospectiva. Ele foi a causa determinante.

Sabe-se que ciência, arte, literatura, cinema, teatro não se encontram no quadro dos interesses essenciais do dr. Cavaco. E que as suas famosas confusões culturais, deploráveis num primeiro-ministro tornam-se imperdoáveis num homem que ambiciosa Belém. Mesmo o gosto pelo fado «novo», trovado por Katia Guerreiro, é aquisição recente e, suspeito, passageira.

A «imagem» de Portugal no estrangeiro têm-na dado Alexandre Quintanilha, António Damásio e Paula Rêgo, Saramago, Agustina e Lobo Antunes, Manoel de Oliveira e João César Monteiro, Madredeus e Rodrigo Leão, Cabrita Reis e Julião Sarmento, Joaquim de Almeida e Maria de Medeiros - para só falar de alguns e do nosso tempo actual. Há muitos mais, que Cavaco sempre desprezou por ignorância e indiferença.

Na inesquecível viagem a Paris, utilizando o patronímico na forma majestática, declarou: «Todos eles atacam o Cavaco porque há falta de argumentos melhores». Entre a urdidura desta frase, trôpega pelo percalço gramatical, a verdade dos factos, e a pompa egocêntrica, compõe-se o retrato de um homem que tem de si próprio a melhor das opiniões. Além de nos reforçar a ideia de que não possui um pingo de humor.

Estamos a grande distância do perfil adequado a um Presidente da República, o qual deve legar-nos uma égide de humanismo, contemporização, ampla curiosidade de interesses, espírito dialogante, aproximação afectiva. Este homem não é só um frigorífico de emoções: desperta muito do que de mais assustador existe, adormecido ou dissimulado, na sociedade portuguesa. Acaso me engane - nesta coluna assinalarei o meu erro de interpretação.
Até lá?

APOSTILA 1 – A miuçalha tem-me saltado às canelas e tentado morder. Sacudo a perna e lá vai, pela escada abaixo, o analfabetismo e a estupidez, habitualmente antagonistas da razão. Não me saturo, porém, do divertimento proporcionado pela canzoada, com perdão da metáfora. Serve-me, além do mais, de adestramento ao riso, a mais sábia maneira de ferrar parvajolas ladrantes.

APOSTILA 2 – O incidente em Barcelos, com a agressão verbal e física a Mário Soares, resulta da convergência atípica que define os contornos belicosos da Direita mais exacerbada. O acto descreve uma ideologia e o carácter intempestivo dos que já nem sequer aguardam a hipotética vitória do seu candidato para demonstrar a ânsia do ajuste-de-contas. Percebe-se a raiva. E o que aí viria, acaso triunfasse esta truculência desesperada.

APOSTILA 3 – O meu amigo Vasco Graça Moura, grande poeta, grande tradutor, acaba de lançar, por intermédio do jornal «Público», com o apoio do Millennium, uma antologia fundamental: «Natal? Natais - Oito Séculos de Poesia sobre o Natal». Este homem de fortes convicções e desprovido de preconceitos estéticos e ideológicos, dá, novamente, uma lição de grandeza moral e intelectual. A ter sempre em conta, neste tempo de ranger de dentes.

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