Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
09 de Janeiro de 2007 às 13:59

Gritem!

Se algum dia me enforcarem, que seja aos gritos, que me cubram de insultos, que me cuspam na cara, que façam qualquer coisa que me distraia da companhia mais opressiva – a da minha própria morte.

  • ...

E a corda, que seja de sisal – não me privem dessa última dor, expressão ainda de vida.  A outra alternativa seria o enforcamento "como deve ser": frio, silencioso, limpo, com uma solenidade terrível, o enforcado a caminhar para o patíbulo sem outro foco que não o seu próprio e triste fim. A gritaria foi o que vi de mais humanitário no enforcamento de Saddam Hussein.

E, no entanto, o que gerou as maiores manifestações de repulsa pela execussão do antigo ditador foram os gritos de ódio contra o condenado. Até os norte-americanos disseram, na voz de um general, que teriam feito as coisas "de outra maneira". Pois, eles são mesmo muito bons nisso. Têm até a injecção letal – última palavra em homicídio legal.

Requinte de crueldade não foi a gritaria, mas  a corda de cânhamo (não abrasiva, os enforcados a-do-ram!).

Que horror – não os gritos e a maneira como foi feito, mas o próprio gesto.

Se até das coisas mais feias se pode extrair alguma beleza, da horrível existência de Saddam Hussein talvez se possa tirar alguma coisa que se aproveite. E não me refiro a um comportamento eventualmente mais discreto da plateia nos próximos enforcamentos. O que a exibição do enforcamento de Saddam Hussein, na grande praça pública que é o YouTube, nos pode ajudar a ver de importante não é a má-criação da torcida, mas a contradição em termos que há entre sentido de humanidade e pena de morte.

Foi um linchamento? Claro que foi, mas o que fez daquilo um linchamento não foram os apupos da assistência, e sim o cadafalso e a corda (de cânhamo). E, se não fossem o cadafalso e a corda (de cânhamo), seria a cadeira eléctrica ou a agulha e a seringa. Pena de morte é linchamento. Seja qual for o método utilizado, sejam quantos forem os recursos previstos em lei, seja qual for o rigor formal observado durante o processo e na execução da pena, quando um homem é condenado à morte instaura-se um ritual de linchamento. No Iraque ou nos Estados Unidos da América. Com ou sem gritaria.
 
PS: Pena de Saddam? Eu?... Sim. A verdade é que não sei que outro nome lhe dar. Talvez porque o nome disso seja "pena" mesmo. Sempre detestei Saddam (e não gosto mais dele agora). Nunca me terão visto negar a moralidade de uma acção armada, mesmo que estrangeira, que o derrubasse. Quando se anunciava a intenção norte-americana de invadir o Iraque, o meu temor (tragicamente confirmado) era muito mais de um erro estratégico do que de um erro moral. E, desde que o vi com a corda (de cânhamo) ao pescoço, tenho noites mais atormentadas. E, sem o retrocesso de um milímetro sequer do meu horror a Saddam, sinto uma pena pungente do assassino enforcado.
 
PPS: A ideia de democracia implica, necessariamente, no reconhecimento da falibilidade do Estado. O reconhecimento da falibilidade do Estado inibe, de maneira inapelável, qualquer hipótese de instituição legal da pena de morte. Portanto, onde há pena de morte não há democracia.
 
PPPS: Carros, rua!

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio