Opinião
Gritem!
Se algum dia me enforcarem, que seja aos gritos, que me cubram de insultos, que me cuspam na cara, que façam qualquer coisa que me distraia da companhia mais opressiva – a da minha própria morte.
E a corda, que seja de sisal – não me privem dessa última dor, expressão ainda de vida. A outra alternativa seria o enforcamento "como deve ser": frio, silencioso, limpo, com uma solenidade terrível, o enforcado a caminhar para o patíbulo sem outro foco que não o seu próprio e triste fim. A gritaria foi o que vi de mais humanitário no enforcamento de Saddam Hussein.
E, no entanto, o que gerou as maiores manifestações de repulsa pela execussão do antigo ditador foram os gritos de ódio contra o condenado. Até os norte-americanos disseram, na voz de um general, que teriam feito as coisas "de outra maneira". Pois, eles são mesmo muito bons nisso. Têm até a injecção letal – última palavra em homicídio legal.
Requinte de crueldade não foi a gritaria, mas a corda de cânhamo (não abrasiva, os enforcados a-do-ram!).
Que horror – não os gritos e a maneira como foi feito, mas o próprio gesto.
Se até das coisas mais feias se pode extrair alguma beleza, da horrível existência de Saddam Hussein talvez se possa tirar alguma coisa que se aproveite. E não me refiro a um comportamento eventualmente mais discreto da plateia nos próximos enforcamentos. O que a exibição do enforcamento de Saddam Hussein, na grande praça pública que é o YouTube, nos pode ajudar a ver de importante não é a má-criação da torcida, mas a contradição em termos que há entre sentido de humanidade e pena de morte.
Foi um linchamento? Claro que foi, mas o que fez daquilo um linchamento não foram os apupos da assistência, e sim o cadafalso e a corda (de cânhamo). E, se não fossem o cadafalso e a corda (de cânhamo), seria a cadeira eléctrica ou a agulha e a seringa. Pena de morte é linchamento. Seja qual for o método utilizado, sejam quantos forem os recursos previstos em lei, seja qual for o rigor formal observado durante o processo e na execução da pena, quando um homem é condenado à morte instaura-se um ritual de linchamento. No Iraque ou nos Estados Unidos da América. Com ou sem gritaria.
PS: Pena de Saddam? Eu?... Sim. A verdade é que não sei que outro nome lhe dar. Talvez porque o nome disso seja "pena" mesmo. Sempre detestei Saddam (e não gosto mais dele agora). Nunca me terão visto negar a moralidade de uma acção armada, mesmo que estrangeira, que o derrubasse. Quando se anunciava a intenção norte-americana de invadir o Iraque, o meu temor (tragicamente confirmado) era muito mais de um erro estratégico do que de um erro moral. E, desde que o vi com a corda (de cânhamo) ao pescoço, tenho noites mais atormentadas. E, sem o retrocesso de um milímetro sequer do meu horror a Saddam, sinto uma pena pungente do assassino enforcado.
PPS: A ideia de democracia implica, necessariamente, no reconhecimento da falibilidade do Estado. O reconhecimento da falibilidade do Estado inibe, de maneira inapelável, qualquer hipótese de instituição legal da pena de morte. Portanto, onde há pena de morte não há democracia.
PPPS: Carros, rua!