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05 de Novembro de 2010 às 12:11

Far Away So Close

Obama e as eleições, Jon Stewart e a "Marcha para restaurar o bom senso", Sarah Palin e o Tea Party Movement... Esta é uma análise das eleições norte-americanas num mundo globalizado. Qual o seu impacto nas tendências de "marketing" político? Qual a sua influência na economia mundial? Aqui fica a leitura de Nicolau do Vale Pais

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O Tempo em Pessoa

"You...
You, whom we love...
You do not see us...
You do not hear us...
You imagine us in the far distance.
Yet we are so near."
Wim Wenders in "Far Away So Close"


Pousado no monumental pórtico das Portas de Brandeburgo, o Anjo deseja cair e ser humano. A seus pés, Berlim reunificada. O seu desejo há-de concretizar-se mais adiante na película de Wim Wenders, quando salva uma criança da morte certa em Alexanderplatz - e essa última realização é premiada com a mortalidade, o amor, a existência, as cores. Confuso, o ex-anjo não consegue, como antes, ouvir os pensamentos das pessoas, ou mesmo ter noção da projecção ou do som da sua própria voz - embora pouco comum, é um mortal; não sabe sequer desviar-se dos carros. Há-de cruzar-se com "Emil Flesti", um personagem duvidoso, um jogador nato, cujo nome é um anagrama foneticamente desconcertante para "Time It Self", o "Tempo em Pessoa"; perde a sua armadura e o dinheiro. Quando é detido no Metro, percebemos, perplexos, que há algo mais que também ignora acerca da humanidade: o conceito de identidade.

"Ich bin ein Berliner" rematava o Presidente Kennedy em Berlim, em mais um capítulo da saga crepuscular que é a História da Europa. Não somos anjos que possamos ouvir os pensamentos dos outros, somos humanos, temos dificuldade em escutar a nossa própria voz; quando, a vinte e quatro horas das eleições intercalares americanas da passada terça-feira, a CNN noticiava as ligações entre facções organizadas da extrema-direita holandesa e inglesa ao "Tea Party Movement", muitos do lado de cá do Atlântico terão despertado para as semelhanças de propósito nefasto, entre a governação feita de e para o Puritanismo - sem concessão política, sem mediação, sem "governo", casando morbidamente "Igreja" com "Estado" sem espírito de Lei - com a xenofobia instituída pelo "Reich" que, de Guernica a Londres, da Noruega ao Pacífico, mergulhou o Planeta num conflito que custou milhões de almas. A importância destas eleições nos Estados Unidos excedia bem a novela à volta da popularidade do seu Presidente; demasiadas vezes optamos pela observação do protagonista em vez do enredo. O excesso iconográfico é parte do preço a pagar pela Liberdade.


Um Americano em Londres

"The midnight gangs assembled, and picked a rendez-vous
for the night:
They'll meet underneath that giant Exxon sign,
that brings this fair city light.
There's an opera out on the turnpike,
There's a ballet being fought out in the alley,
Until the local cops (cherry top!), rip this holy night;
The street´s alive as secret debts are paid,
Contacts made, they vanished unseen;
Kids flash guitars just like switch-blades,
hustling for the record machine...
The hungry and the hunted explode into rock´n roll bands,
That face off against each other out in the street,
down in Jungleland."
Bruce Springsteen, "Jungleland", in "Born To Run", 1975


Na edição cuidada que em 2005 celebrava o trigésimo aniversário do seminal "Born to Run", há um DVD que regista o concerto dado por Bruce Springsteen e a E-Street Band no Hammersmith Odeon de Londres. No texto com que recorda esse concerto, Bruce Springsteen relata como a banda aterrou na capital do Reino Unido - a "terra dos seus heróis míticos" - e de como no meio daquele caos promocional se sentiu um provinciano de Nova Jersey numa exótica Londres que ainda não tinha visto nascer o seu primeiro McDonald's. Lembra este americano que foi quando o cozinhado "soul-punk" e "rhythm and blues", temperado com o visionarismo dos cantores que trazia na bagagem se soltou, para chocar de frente com o espírito psicadélico da sofisticação europeia, que este concerto se transformou numa performance "lendária".

David Bowie tinha cantado Jacques Brel enquanto pretensiosamente assassinava o alter-ego Ziggy Stardust naquela mesma sala, dois anos antes; mas para o "poeta popular patriota" Bruce Springsteen, não eram as órbitas espaciais e os rastos de "glitter" que simbolizavam o movimento perpétuo desta era das transformações e conquistas lunares encomendadas à medida da ambição do malogrado JFK; o amor fazia-se em carros de pára-choques cromados, polidos ao domingo até estarem livres dos resíduos dos derivados de petróleo. Foram precisas mais duas décadas para que o preconceito da crítica europeia consagrasse Bruce Springsteen como aquilo que é - um cantor popular, um vitalista, um doer proletário, e um poeta à altura do seu incontestável sentido de cidadania. O antiamericanismo está defunto, depois de décadas senil.


"Ask Men"
Quando há dias uma votação "online" com mais de meio milhão de "eleitores visitantes" do site "Ask Men" (askmen.com) colocou o humorista, autor e apresentador do "The Daily Show", Jon Stewart, no primeiro lugar da lista das pessoas mais influentes dos Estados Unidos, a notícia só foi ultrapassada em estrondo por outra directamente relacionada, digamos assim; é que os segundos, terceiros e quarto lugares foram para Bill Gates, dono da Microsoft, Mark Zuckerberg, fundador da rede social Facebook, e para Steve Jobs, chefe-executivo e proprietário da Apple, respectivamente.

Não acreditando que as guerras informáticas entre "maçãs" e "janelas" - mesmo que irradiadas e difundidas incessantemente no dito Facebook... - possam ter prejudicado os restantes membros do honroso pódio, há que perguntar a que se deve este primeiro lugar, sobretudo quando constatamos que esta votação teve lugar ainda antes daquela que foi a primeira ida de um Presidente em exercício ao dito programa, a já muito difundida visita de Barack Obama do passado dia 27 de outubro; mas não será demasiado arriscado dizer que a resposta estará relacionada com a aceitação dos aspectos performativos e de conexão extrovertida de ideias desta personagem, ela própria intérprete virtuosa de um modelo de sucesso assente na valorização do pragmatismo observador e da inteligência, ou, se preferirmos, da sua mais assertiva revelação: o sentido de humor.

A contabilização do sucesso da tão badalada "Marcha para restaurar o bom senso" que Stewart organizou, em óbvio paralelismo com as conquistas do Movimento pelos Direitos Civis que Martin Luther King liderou, tem tomado aspectos de bizarria; as contas não são em "número de presentes" mas em "anos". É que o intervalo entre 1955, ano em que a cidadã norte-americana negra Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar a uma outra cidadã norte-americana branca num autocarro na cidade de Montgomery, afrontando a segregação, e 2008, ano em que o negro Barack Obama foi eleito Presidente, é de uns meros 53 anos, uma vírgula na História. Na América, uma transformação profunda ocorre tão só no espaço de uma geração.


Quem são os "Ingleses"?
A "acção directa" é, por definição, uma actividade promovida por um indivíduo ou grupo de indivíduos com o intuito de concretizar objectivos sociais, económicos e/ou políticos à margem dos canais vigentes. Quando em Boston, no Massachusetts, a 16 de Dezembro de 1773, um grupo de colonos decidiu destruir um precioso carregamento de chá, atirando-o borda fora em pleno porto, enveredando por tal caminho, estaria longe de imaginar a sinistra ressurreição que temos vindo a testemunhar, mesmo considerando a carga irónica presente na ambiguidade do nome "Tea Party" (Festa do Chá/Partido do Chá).

O crescente valor de mercado do chá durante a segunda metade do século XVIII e os problemas financeiros da "racionalíssima" Companhia das Índias Orientais de Inglaterra, levaram a que a Coroa inglesa afrontasse o espírito liberal dos colonos sob sua jurisdição comercial em território Americano; para estancar a concorrência foi legislado um sistema monopolizante através de um pacote de leis alcunhado de "The Tea Act". Este obrigava os colonos a comprar chá em exclusivo à dita Companhia, em conjunto com uma política fiscal penalizadora para quem arriscava capital em troca de produto, e altamente benéfica para quem fazia a colecta sobre o material que vendia (um lucro comercial juntamente com um lucro financeiro).

O protesto do "Boston Tea Party Movement" contra o "Tea Act" e as contra-retaliações que se lhe seguiram, espoletaram assim a Guerra da Independência Americana, o culminar da "American Revolution". Para a História ficou um "slogan" que é de si um conceito fundador do mundo Ocidental deste século XXI: "no taxation without representation", isto é, os impostos só podem ser fixados por representantes eleitos pelos que por eles são abrangidos.

A tolerância de um sistema cívico a medidas desesperadas e coercivas depende muito de quem é o destinatário das mesmas, até que ponto foi realmente afrontado na sua dignidade, e, se calhar mais ainda, de que outras tentativas foram feitas antes de se chegar ao extremo da desobediência, violência ou confrontação (ou à sua desresponsabilizante instigação). A pergunta que ninguém parece ter tido oportunidade de fazer a nenhum dos candidatos do "Tea Party Movement" - que, na sua maioria, recusaram terminantemente o uso de meios de comunicação nacionais, preferindo sempre espaços de publicidade comprada em meios locais, ao invés de entrevistas ou debates - é "quem são os Ingleses?". Quando, ao longo destes últimos dois anos, figuras com a responsabilidade recente de terem integrado uma equipa Presidencial - como Sarah Palin, a "mater familias" do Movimento - incitam à redução indiscriminada do tamanho do Governo, ao resgate da América das mãos dos que a privam da sua "liberdade", contra quem falam? Quem são, hoje, "os Ingleses"? Obama, negro, que ganhou? Ou McCain, branco, que com ela perdeu?

Oficialmente, o "Tea Party Movement" não tem liderança nem designa candidatos; limita-se a reunir e revelar apoios às agendas que entenda estarem em linha com o seu conceito de cidadania e o seu conceito de liberdade. Na prática, não é bem assim; daí que algumas sensatas e moderadas vozes do Partido Republicano tenham ao final da noite começado já a falar de "candidaturas independentes" para os predilectos do "Movement", ou seja, a promover a pedagógica protecção do Partido Republicano contra agentes deste tipo: populista, mas furtivo.

"Democracy rocks" - A noite eleitoral
Obama e o Partido Democrata perderam as eleições. Os Americanos foram a votos eleger os seus representantes locais nos órgãos de soberania da sua república federada ou alguns dos seus líderes locais tão só, combinados nalguns casos com outros sufrágios - na Califórnia, por exemplo, a ocasião serviu para realizar um referendo à legalização da marijuana.

As sondagens mais próximas da hora eleitoral anteviam, na sua maioria, a perda do Congresso e do Senado para o Partido Democrático, o que se verificou no primeiro caso mas não no segundo. O equilíbrio mudou, bem como os imperativos negociais para quem está no poder, mas não mais do que aquilo que a Constituição americana prevê e que, pelo sufrágio universal, a democracia consagra. Como relatava há dias na revista "Time" o insuspeito Joe Klein, foi penalizada a política "eat your peas", isto é, "come o que tens no prato" - reformas complexas, úteis, mas muitas vezes mal explicadas aos contribuintes. O desaparecimento do estilo pedagógico que conduziu Obama à improvável vitória eleitoral nas presidenciais e nas primárias que as antecederam, fez-se pagar. "It's the Economy".

Mas houve mais. Ao tentar transformar as intercalares num plebiscito referendário tipo "sim ou não" à Presidência de Obama, o "Tea Party Movement" sai como o maior derrotado da noite. Na realidade comparativa, do ponto de vista das ilações a tirar sobre a avaliação que o eleitorado possa querer fazer do Presidente, esta foi uma noite semelhante a tantas outras na história recente dos equilíbrios do sistema democrático americano, sem o "turnaround" apaixonado e vingativo que as alas mais extremistas vinham legitimando, através de um exercício sem contraditório de mera repetição exaustiva dos problemas de conjuntura, tentando caçar a sua Moby Dick. Aconteceu à Presidência de Obama o mesmo que à de Truman, Reagan, Bush ou Clinton - este tipo de resultado é visto como uma salvaguarda constitucional, uma espécie de oportunidade para "não pôr os ovos todos no mesmo cesto": uma expressão muito grata aos portugueses e, pelos vistos, aos americanos também.

O Estado do Delaware (próximo de Washington D.C.) conta uma história reveladora sobre aquela noite. A favorita do "Tea Party Movement", Christine O'Donnell, perdeu a eleição para o Senado estrondosamente para Chris Coons, um resultado que contribuiu significativamente para que o Partido Republicano não conseguisse inverter o Senado em termos nacionais, em conjunto com outras derrotas sonantes como as dos candidatos da Califórnia e do Nevada, onde as sondagens também pregaram a partida ao "Tea Party". A derrota de O'Donnel faz defunta a estratégia assumida pelo Movimento de "empurrar" candidatos desconhecidos e inexperientes para os lugares de candidatura, tentando assim passar uma imagem de independência "offstream" anti-Washington. Esta candidata, que advogava os valores de família como mais importantes em gestão do que a experiência política, recusou-se a comentar porque é que a renda da sua casa era paga pelo gabinete de campanha; também nunca quis explicar quanto custou ou quem pagou a dita campanha, e muito menos foi capaz, num debate promovido por uma Universidade do Estado, de mencionar que emendas à Constituição pretendia alterar na sua cruzada para "libertar a América" e promover a contracção do Governo. Acabou por culpar o canibalismo interno pela sua derrota. Era de prever.

Claro que alguns Republicanos vieram defender que o Movimento terá contribuído para a revitalização do Partido; e claro que isso não deixará de ser verdade, pelo menos no capítulo da repetição até à náusea de um "pensamento" ou "sensação" até que pareça aos nossos ouvidos que ele se transformou numa "ideia" - este é, aliás, o dogma comunicacional da demagogia, que se centra na constatação do problema como forma de o resolver. Não basta.

A prová-lo está a eleição do Republicano Marco Rubio, de 39 anos, para o mesmo Senado, na tradicionalmente Republicana Florida. Este candidato da Direita, filho de latinos, que proclamou na noite da vitória que "será sempre um Americano filho de exilados", arrecadou um triunfo esperado nos números, mas surpreendente nos ensejos que as sondagens à saída das urnas ("exit polls") revelaram; Rubio conquistou a maior parte do eleitorado latino - uma apetecível fatia, em número e simbologia - invertendo a proporção que Obama tinha ali conquistado em 2008. E é evidente que se trata de um triunfo obtido pela proximidade do candidato ao eleitorado, pela campanha lúcida que conduziu, pela forma como debateu "ideias" e não "carácter". E o facto de ser apoiado pelo "Tea Party Movement" fica assim com a sua significância reduzida à redundância, quando nos lembramos da humildade serena com que avisou - alertando as esferas populistas do Partido - que "é um erro achar que entrámos numa nova era Republicana; foi-nos dada tão só uma segunda oportunidade".

Susy Kosh, uma texana anónima, teve os seus nano segundos de fama na passada terça-feira; saía das urnas com o seu filho pela mão, usando orgulhosamente um crachá que dizia "Eu Votei", quando se cruzou com a equipa de reportagem da CNN - "A política pode não motivar-me", disse. "But Democracy Rocks", acrescentou. W



"Faraway, So Close"
("Tão Longe, Tão Perto")
Realização: Wim Wenders
Argumento: Wim Wenders,Ulrich Zieger, Richard Reitinger
Fotografia: Jürgen Jürges
Edição: Peter Przygodda
Música: Laurie Anderson, Jane Siberry, Simon Bonney, Lou Reed, Herbert Grönemeyer, U2, Johnny Cash, The House of Love, Nick Cave
Design de Produção: Albrecht Konrad
Elenco: Otto Sander, Peter Falk Horst Buchholz, Nastassja Kinski, Heinz Rühmann, Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Rüdiger Vogler, Willem Dafoe, Michail Gorbatschov e Lou Reed (aparições especiais)
Festivais e Prémios: 1993 Cannes, Grand Prix of the Jury 1993 Bavarian Film Prize (Director)
Produção: Ulrich Felsberg Road Movies Filmproduktion/Berlin
Formato: 35mm, preto-e-branco e cores.
Título Original: "In Weiter Ferne, So Nah!"
do site oficial: www.wim-wenders.com



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