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11 de Agosto de 2003 às 10:52

Eva Gaspar: «Duisenberg o que é de Duisenberg»

A César o que é de César. E a Duisenberg o que é de Duisenberg. “Gaffes” incluídas. Não se pode é reduzir a história do homem às ocasiões que perdeu para estar calado.

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Se tudo correr como o previsto, dentro de três meses Wim Duisenberg vai fazer as malas, abandonar a cinzenta Frankfurt e passar a dedicar mais tempo ao que o próprio confessa ser a sua grande paixão: a pesca.

O primeiro presidente do Banco Central Europeu (BCE) está de saída e, ao contrário do que muitos lhe destinavam, não sairá pela porta pequena, se bem que – como na esmagadora maioria dos casos – talvez só com o passar dos anos venha a conquistar o lugar devido na história da união monetária.

Duisenberg, diga-se a bem da verdade, não tem nem nunca terá tido especial talento para comunicar, e muitas das suas “gaffes” ficaram a dever-se pura e simplesmente a incúria. Ou, se se quiser ser mais benigno, a ingenuidade. A mais grave, e que seguramente o acompanhará para o resto dos seus dias, ocorreu quando, em Outubro de 2000, andava já a cotação do euro pelas ruas da amargura.

O presidente do BCE disse, em entrevista ao Financial Times, que seria completamente ineficaz intervir no mercado monetário para tentar segurar a jovem moeda europeia quando, em sua opinião, o euro estava a ser vítima de choques externos, designadamente da vaga de turbulência que agitava (e continua a agitar) o Médio Oriente. Conta o jornalista do insuspeito diário financeiro britânico que o assessor que o acompanhou na entrevista pediu para que esse trecho fosse apagado, mas que teria sido o próprio Duisenberg a insistir que a frase, que aparentemente lhe parecia inócua, fosse para as rotativas. No dia seguinte, o euro voltou a cair, mas terá sido a cotação do próprio Duisenberg a mais castigada. O “Monsieur Cinq Secondes”, como era conhecido entre os franceses pela rapidez com que, na época em que dirigia o Banco Central holandês, seguia os passos do Bundesbank, passou num ápice a “Dim Wim” (que, em tradução livre, resulta em qualquer coisa como “apagado e incapaz de se exprimir”), e os pedidos velados de demissão começaram a chover.

O mais corrosivo veio de Itália. “É inaceitável que a única instituição que toma decisões na Europa seja o BCE e que este siga uma teoria ultra-monetarista e aja com superficialidade e improviso”, protestou o então ministro italiano do Trabalho, Cesare Salvi.

Duisenberg segurou-se na cadeira e seguiu em diante com o mesmo ar aparentemente impávido com que, na famigerada noite de 1 de Maio de 1998, se apresentou à Imprensa em Bruxelas para anunciar que, “de livre vontade”, havia decidido não cumprir na íntegra o mandato de oito anos como presidente do BCE para o qual acabara de ser nomeado. Isto porque Jacques Chirac queria que tivesse sido um francês a inaugurar a liderança do BCE, alegando um velho acordo entre a França e a Alemanha, em que esta teria sido a condição negociada como contrapartida de sedear em Frankfurt a autoridade monetária europeia.

Duisenberg podia ter recusado ser o primeiro, e certamente o último, presidente com um mandato logo à partida amputado. Não o fez. Passou por um episódio certamente humilhante, ao tentar justificar publicamente que não considerava ter idade (tem hoje 68 anos) para levar até ao fim o trabalho. Não se sabe se sofrerá de alguma úlcera no estômago. Mas não há a menor dúvida de que foi obrigado a engolir muitos “sapos”.

Ainda assim, muitas das frases menos acertadas ficaram a dever-se à forma irresponsável como muitas vezes Duisenberg foi posto à prova. Ao contrário do presidente da Reserva Federal norte-americana, que tem de se submeter às perguntas dos congressistas apenas duas vezes por ano, o presidente do BCE comparece mensalmente perante a Comissão dos Assuntos Monetários do Parlamento Europeu. E para quem já assistiu, o mais surpreende não é sequer a boa ou má prestação de Duisenberg.

Isso passa a ser secundário face a insistência absurda dos eurodeputados em colocar perguntas que, sabem de antemão, jamais poderão ser respondidas. É verdade que, ao invés do modelo norte-americano e britânico, o BCE não tem a obrigação de publicar as minutas das reuniões, mas isso não é justificação para o espectáculo de “caça ao homem” em que muitas das sessões em Bruxelas se converteram.

Duisenberg pode ter muitos motivos para sair com sensação de que poderia ter feito melhor. Apesar de a introdução do euro ter sido um sucesso, e de o euro estar em alta, a economia teima em não recuperar e o desemprego continua a atingir quase um décimo da população activa da Zona Euro. Mas o BCE é hoje uma instituição credível. E, se o grau de independência puder ser medido pelas (inúmeras) tentativas de interferência política, então estamos também perante uma das instituições mais independentes do mundo.

A César o que é de César. E a Duisenberg o que é de Duisenberg. “Gaffes” incluídas. Não se pode é reduzir a história do homem às ocasiões que perdeu para ficar calado.

Eva Gaspar, Editora de Economia e Políticas do Jornal de Negócios

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