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Estes romanos estão loucos

A Itália é um grande país. Tem uma cultura pujante, uma economia dinâmica, uma qualidade de vida acima da média. Aí se combina de uma forma estimulante o antigo com o contemporâneo, numa fascinante mistura de arte antiga, dialectos peculiares, gastronomia

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Veneza, Nápoles, Roma, Florença, entre tantas, não têm paralelo no mundo. Visitá-las dá tonturas. São viagens ao que de melhor a história e a estética têm para nos oferecer, tanto pelo fausto dos ricos como pela criatividade da gente comum, nas ruas, nos sons, nos odores, no caos.

No entanto, se pensarmos no modelo ocidental da política e da democracia representativa, a Itália é um estado falhado. Não deve haver outro lugar onde os políticos sejam tão venais e mal encarados. Onde o desprezo que o povo lhes dedica seja maior. 63 governos desde a II Guerra Mundial disso dão conta. A enorme abstenção também.

As razões de tamanho descrédito são fundas. Mergulham à direita na promiscuidade entre a democracia cristã e a máfia e à esquerda em rivalidades pessoais e arcaicos debates ideológicos. A democracia italiana foi erigida em cima de uma enorme teia de mentiras, dissimulações, golpes, corrupções. O banditismo entranhou-se nas estruturas partidárias e ocupou lugares na administração. Não tem sido fácil proceder à limpeza. As raízes são muito profundas. A corrupção em Itália não é uma excepção, é um sistema de vida, de muitas pessoas e empresas, de parte do estado. Noutro campo, a par de um dos mais avançados debates sobre a evolução do pensamento de esquerda, Gramsci, eurocomunistas, democracia radical, assistiu-se ao constante disparate da típica confrontação esquerdista em nome de questiúnculas pessoais ou minúsculos detalhes ideológicos. A esquerda desmembrou-se, perdeu o contacto com o concreto, consome-se nos expedientes.

Em consequência deste processo de degenerescência surgem os partidos na hora, brotando a cada eleição com novas formações e designações, tantas delas sem qualquer referência às velhas ideologias e antigos posicionamentos. É certo que ainda se usa a terminologia esquerda e direita, mas socialismo, comunismo, social-democracia, liberalismo, democracia cristã só muito dificilmente podem servir de rótulo para organizações onde prevalece o tacticismo, o oportunismo e, acima de tudo, o culto da personalidade. À esquerda fala-se de “arco-íris”, à direita de “il cavalieri”. Onde já vão os velhos partidos?

A Itália é um laboratório da política do futuro. Tudo o que se diz que vai acontecer nas democracias ocidentais já aí aconteceu. O descrédito absoluto dos políticos, a fragmentação dos partidos, o populismo desenfreado, a promiscuidade entre interesses privados e interesse público, o poder antidemocrático dos media, a manipulação da opinião pública, a substituição das convicções pela publicidade, o regresso de uma espécie de feudalismo em torno de um novo príncipe neomaquiavélico.

Hoje são poucas as pessoas que mantêm convicções ou um pensamento coerente. A maioria deriva ao sabor das correntes de opinião, as quais só em pequena medida são produto das propostas dos principais agentes políticos. Comentadores, jornalistas, empresários, publicitários, gente da cultura, do futebol, da televisão têm por junto mais força na criação de tendências políticas do que os partidos ou as organizações sindicais.

Neste panorama, o descrédito e fragmentação da política foram substituídos pela realidade da televisão. Como diz o meu amigo João de Almeida Santos, especialista em questões italianas, não só políticas mas também gastronómicas, diga-se de passagem, a única coisa que hoje unifica a Itália é a televisão.

A televisão italiana demonstra como os media actuais não são mais um contra-poder mas sim um efectivo pró-poder. Um instrumento político que mais do que as velhas categorias das ideologias, interesses de classe, representações sociais se constituiu como máquina de fabricação de poder. A sua acção, parcial, tendenciosa, espectacular, favorece determinadas opções e diminui ou apaga outras. Já se sabia que quem não aparece não existe. Mas o caso italiano mostra como a omnipresença televisiva cria uma espécie de estado de hipnose que se torna incontornável em particular no exercício da democracia. Berlusconi não é simplesmente um político que consegue muito tempo de antena, desde logo por ser dono dos principais canais, mas sim o primeiro político totalmente produto da televisão. Berlusconi é um “reality show” com pernas. Um político virtual, animado por estudos de opinião pública e estratagemas da publicidade que se instalou em permanência nas casas dos italianos e que de lá não quer sair. É um político altamente adaptativo que promete o que for preciso, faz o que for preciso, dá o espectáculo que for preciso.

Como se vê a coisa resulta. Os italianos atordoados com o brilho do ecrã voltam a oferecer-lhe o governo num gesto que só pode dar razão a Astérix. Pois nestas coisas, como se sabe, a mesma história surge primeiro como tragédia, à segunda como farsa e à terceira como piada de mau gosto.

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