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21 de Junho de 2006 às 13:59

Espanha: Café Amargo

Católico e conservador o líder da Liga Regionalista da Catalunha Francesc Cambó sonhou com uma Catalunha autónoma numa Espanha grande e unida, mas quando rumou a Madrid para ocupar a pasta do Fomento no governo de União Nacional de Antonio Maura, no resca

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Ficou então para a história a advertência que o andaluz Alcalá-Zamora lhe lançou nas Cortes de Madrid de que não era possível ser ao mesmo tempo o Bolívar da Catalunha e o Bismarck de Espanha.

A Guerra Civil veria Cambó apoiar as hostes de Franco e Alcalá-Zamora, primeiro presidente da Segunda República, condenado ao exílio, mas o dilema Bolívar-Bismarck ainda hoje alucina muito político catalão e espanhol pois é longa e problemática a questão nacional em terras de Espanha.
 
A ideia de Espanha

O termo Espanha começa a impor-se para nomear uma entidade política unificada no final do século XV com Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os reis católicos que conquistaram a Granada mourisca, expulsaram os judeus e viram Colombo descobrir o Novo Mundo.

O centralismo madrileno só viria a impor-se com o absolutismo de Filipe V no início do século XVIII e o despotismo iluminado dos seus sucessores Fernando VI e Carlos III. Foi assim que, vencida a Guerra da Sucessão, o primeiro dos Borbón encetou a unificação legal do reino, poupando apenas os privilégios dos apoiantes que tinha encontrado nas Vascongadas, em Navarra e no Valle de Aran, nos Pirinéus.

Mais tarde, a ideia de Espanha como comunidade nacional, mais abrangente do que o culto do terrunho, da patria chica, ganha corpo frente às investidas de Napoleão. Para além da vertente tradicionalista o sentimento nacional e a ideia de estado-nação são, igualmente, muito marcados pelo centralismo da Constituição de Cádis de 1812, a resposta dos liberais às investidas de Napoleão. Em Março de 1812 as Cortes, proclamando a fé católica de Espanha e adoptando o modelo administrativo centralista francês, definiam a Nação soberana como «a união de todos os Espanhóis em ambos os hemisférios».

Mas o século XIX ficará marcado pela perda das colónias, o fracasso da modernização liberal, a persistência relativa dos poderes nobiliárquicos e o peso dos interesses agrários. As áreas centrais e meridionais não acompanharão a industrialização e o fôlego comercial que darão novo peso às províncias vascas e catalãs.

Um nacionalista como Prat de la Riba viria a expressar as novas realidades ao concluir, no final de Novecentos, que a prosperidade da Catalunha estava em perigo devido ao «desequilíbrio entre a nossa força económica e a nossa nulidade política dentro de Espanha».

As renascenças culturais inventarão novos mitos e alimentarão a reivindicação de poderes para as velhas entidades regionais que se assumem como nações autónomas. Num ambiente de crise, perdido um centro unificador, um madrileno como Ortega Y Gasset virá mesmo a proclamar, em 1920, na sua Espanha Invertebrada, que «Castela fez a Espanha e Castela a desfez».

Unidade e fragmentação são, pois, uma constante da história, mas só o regime de Franco impôs em Espanha um modelo centralista ditatorial estiolando toda e qualquer veleidade de afirmação regional.

Café para todos

Após a morte de Franco um primeiro ponto de equilíbrio foi alcançado com a Constituição de 1978 e a instituição de comunidades autónomas. Catalunha, País Vasco e Galiza foram denominadas nacionalidades históricas e ganharam larga autonomia. Logo depois, a Andaluzia também se assumiu como nacionalidade histórica no quadro da monarquia constitucional. Foi o momento do celebrado «café para todos», no dizer do então primeiro-ministro Adolfo Suárez.

A descentralização, o laicismo e a neutralidade dos militares tornaram-se os esteios da Espanha democrática. Mas o processo de reordenamento do estado está ainda longe de fazer consenso, é pretexto para todas as jogadas das elites políticas, e, assim, não foi por acaso que metade dos catalães se alheou do referendo sobre o novo Estatuto que consagra significativos poderes administrativos, fiscais e de organização judiciária, além de manter a língua catalã a par do castelhano.

O processo de negociações do Estatuto que substituirá o texto de 1979 foi atribulado em Barcelona e a versão adoptada pelo parlamento catalão, em Setembro de 2005, sofreu alterações substanciais.

As discussões nas Cortes de Madrid acabaram por gerar um texto em que o impasse ideológico está bem expresso. No preâmbulo afirma-se que o parlamento de Barcelona definiu a Catalunha como «nação» expressando o seu sentimento e vontade de cidadania. Logo a seguir, no artigo primeiro, a Catalunha passa a ser referida como «nacionalidade».

Tanto bastou para garantir a oposição da Esquerda Republicana da Catalunha ao Estatuto de compromisso. Menos ainda foi suficiente para sustentar a oposição do Partido Popular que vê neste Estatuto uma ameaça à unidade do estado, da mesma forma que alguns dirigentes socialistas não catalães, como Juan Ibarra, presidente da Junta da Estremadura, ou o ex-ministro da Defesa José Bono, natural da província de Albacete, em Castilla-La Mancha.

Este Estatuto da Catalunha é, no entanto, sobretudo em termos fiscalidade e financiamentos do governo central, a matriz que tem guiado a revisão dos estatutos que regerão outras comunidades como Valência e Baleares, Aragão e Andaluzia.

Se os radicais e terroristas do País Vasco forem isolados e cair a reivindicação de independência da grande nação vasca (Euskal Herria), o compromisso catalão poderá também servir para orientar a revisão do Estatuto Euskadi. Mas entre os dois nacionalismos saídos da pujança vascã e catalã no século XIX a diferença sempre foi de monta.

Ao contrário da doutrina racista e culturalista patente nos primeiros escritos do pai do nacionalismo vasco, Sabino Arana, os nacionalistas catalães nas suas vertentes revolucionárias populares ou conservadoras nunca reivindicaram a soberania sobre glórias históricas, exigindo o retorno de Montpellier ou Nápoles, por exemplo, e acomodaram-se à coexistência no seio do estado espanhol. Os nacionalistas vascos, pelo contrário, ainda não alijaram totalmente o lastro da herança de Arana.

Poucas certezas

Certo é que com as suas 17 comunidades autónomas e as cidades autónomas de Ceuta e Melilla, no norte de África, a Espanha ainda está longe de completar o reordenamento do estado na variante quase federal promovida por Rodriguez Zapatero.

Para além das difíceis negociações entre o governo central e as regiões e nacionalidades ou nações o aspecto mais gravoso da questão é a falta de acordo entre esquerda e direita quanto ao modelo de estado. Temos aqui um dos principais dilemas da política espanhola para muitos e bons anos e quanto ao resto pouco mais certezas sobram.

Valha a lição do grande hispanista e catalanista francês Pierre Vilar que considerava, pouco antes de falecer em 2003, que este século assistirá a novos ordenamentos políticos.

O historiador guardava, ao fim de longa meditação sobre os destinos da Península, uma única certeza: em termos de identidades nacionais prevaleceriam pelo peso das suas culturas um reduto vasco, outro português e galaico, a massa castelhano-andaluza e a Catalunha, de Guardamar a Salses.

Pouco mais certezas sobram quanto ao destino ibérico neste século.

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