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Alexandre Brandão da Veiga 13 de Outubro de 2005 às 13:59

Espaço público, espaço privado

O reconhecimento de um espaço privado relevante pressupõe a existência de uma dimensão de interioridade no homem relevante e simultaneamente o reconhecimento de que esse espaço não pode ser imposto aos outros.

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Os holandeses fizeram diques para conquistar terra ao mar. Não se trata de questões históricas porque ainda há algumas décadas tiveram grandes inundações, gravíssimas nas suas consequências. Povo organizado e pragmático por excelência, resolveram a questão de forma magistral. Os diques são uma preocupação diária e estratégica da Holanda. Essenciais para a vida normal e próspera do país. Mas sendo um povo lúcido não têm por hábito ir idolatrar os diques, apenas os vigiam.

Da mesma forma, a separação entre espaço público e privado estabelece um dique essencial para a vida em sociedade. Mas isto desde que o espaço privado nasceu, facto que não é assim tão recente. O reconhecimento de um espaço privado relevante pressupõe a existência de uma dimensão de interioridade no homem relevante e simultaneamente o reconhecimento de que esse espaço não pode ser imposto aos outros.

Os nossos contemporâneos, geralmente com visão curta, julgam-se modernos. A expressão «moderno» é criação dos primeiros escolásticos, os primeiros a ser criticados pelos (actuais) modernos. O homem que usou primeiro de forma consistente esta expressão foi Pedro Abelardo, significando ela «as coisas feitas no modo de hoje em dia». Como é hábito na história os modernos que apenas o são envelhecem rapidamente e rapidamente são passados pelo rolo compressor da História. Porque o hoje muda e o modo também. Os nossos modernos acham que esta distinção entre espaço público e privado é muito recente. E no entanto está bem longe de o ser.

Perante a degradação e progressiva falência das estruturas imperiais o Baixo-Império romano começou a atribuir cada vez mais funções à Igreja. Em primeiro lugar funções assistenciais, mas cada vez mais funções organizacionais. Mais eficazes, mais competentes que as estruturas civis, foram investindo no espaço público para preencher vazios que resultavam da falência imperial.

Sobretudo com as invasões bárbaras os bispos tornam-se os defensores ciuitatis, os defensores da cidade. É a própria população que lhes atribui poderes de gestão da coisa pública. Esta função não é tão caduca quanto isso porque ainda Pio XII teve de desempenhar essa função em Roma com a queda do fascismo durante a II Guerra Mundial. Da mesma forma, perante terrenos incultos, as ordens monásticas viram-lhes serem atribuídas funções de ordenamento do território, das populações, nomeadamente pelos príncipes laicos.

É evidente que a igreja, as igrejas, traziam para organização o que eram. Gestoras impulsionadas pela interioridade, gestoras da interioridade. A luta entre uma gestão teocrática e uma civil é mais que milenar na Europa. A separação entre a gestão do espaço público e o da alma obedeceu a ciclos muitos oscilantes, muito variáveis consoante a época, o local, a situação.

Mas inversamente a gestão do espaço público invade o privado quando está nas mãos dos príncipes laicos. Os príncipes perceberam o poder que lhes dava o domínio do espaço privado e oportunisticamente disso se aproveitaram. O princípio da paz de Augsburgo do século XVI com as guerras do protestantismo mostra exactamente isso. De igual forma os cesaropapismos, bizantino, búlgaro e russo são disso exemplo. Da mesma forma o regalismo português ou o galicanismo francês, muitas vezes considerados antecipadores da separação da Igreja e do Estado, embora em boa verdade o sejam mais do laicismo, coisa bem diversa, são outros bons exemplos disso.

A tradição europeia que herdámos, mais uma vez recolhe ao paganismo indo-europeu, em que a religião é de Estado e ao cristianismo, que protege o espaço privado. Desde a patrística que existe a discussão sobre a obediência interior e exterior devendo-se a segunda aos príncipes, mas não a primeira.

Aquilo que começou por ser uma separação que decorre do aumento de diferenciação sentimental, da valorização do espaço privado e para sua protecção, acaba por ser um ponto de malentendidos. Os laicismos militantes tentam expulsar do espaço público qualquer referência ao privado, e querendo mesmo impor, na sua forma virulenta do radicalismo francês, do nazismo ou dos comunismos conformar o espaço privado.

Sobram duas questões importantes: de onde vêm hoje em dia os perigos contra esta separação? Até que ponto esta separação é desejável ou mesmo possível?

Os perigos vêm sempre de onde menos se espera. É certo que de movimentos islamistas que pretendem transformar a Europa em espaço do Islão, ou a ele submetido, ou pelo menos com bolsas islamitas autónomas. Mas o principal perigo vem exactamente dos laicistas extremos, bem pensantes, que assumem posturas de curas de aldeia determinando o que é politicamente correcto amar ou não, condenar ou não. Esses exigem muito para além do espaço público, exigem a conformação dos sentimentos mais íntimos aos seus paradigmas. Temos de amar a paz (a deles), os outros povos (não os nossos), as outras culturas. Exige-se a conformação da atitude ética conforme os seus paradigmas e não apenas comportamentos públicos exteriores. A ânsia de laicismo a todo o preço acaba por ter resultados profundamente ridículos. Uma coisa é exigir que no espaço público não se exibam os órgãos sexuais, outra é de se ter esconder os sinais secundários sexuais. Os homens teriam de esconder a sua barba, as mulheres o contorno dos seus peitos.

Que a separação é desejável não tenho dúvida; é importante para a paz pública e para a liberdade interior. Mas que isso passe por esquecer no espaço público a conformação dos valores culturais, religiosos e afectivos dominantes na sociedade começa a soar a esquizofrenia. Que seja possível uma separação perfeita é pura ficção. Os Estados laicos militantes substituíram os padres e pastores pelos presidentes de Câmara e membros do governo. Inventaram à força rituais de consagração na morte e no casamento, por vezes mesmo no nascimento (mais raramente, como as cerimónias de «baptismo» soviéticas dos anos 1930).

Que ela seja possível, que se tenha de limpar dos espaços públicos quase toda a arte que delas consta, não só as igrejas, as catedrais, mas também os palácios, as obras de arte (que diferença existe aliás entre a recepção cristã e a recepção pagã na arte, se bebem da mesma fonte?), que seja possível esvaziar a nossa linguagem das suas marcas cristãs e pagãs, que se limpe do vez do vocabulário a palavra «pessoa» ou «ignóbil», como se fez com a caridade (não nos países anglo-americanos, que são mais sensatos neste aspecto), que passou primeiro por fraternidade até ganhar a versão burocrática francesa do século XIX de solidariedade, essa é tarefa impossível. Impossível e empobrecedora. Não se podem separar totalmente os sentimentos da sua expressão, e em última análise são sempre as mesmas pessoas que vivem no espaço público e no privado. Cortá-las ao meio é cindir personalidades, obrigá-las a viver na bipolaridade. Empobrecedor igualmente, porque um espaço público que seja «neutro» não só lhe retira a seiva, como em bom rigor apenas substitui o sumo natural pelo refrigerante. Porque é impossível vida pública sem alguma expressão de intimidade, sem que ela tenha marca dessa mesma intimidade. O resultado é bem conhecido: Inventam-se sentimentos para trazer à rua, bem arrumados, muito generosos. Como fatos de domingueiro de baixa classe para levar à missa.

Quanto à importância desta separação apenas teria a atitude dos holandeses. Vigiaria com cuidado os diques, mas não os iria idolatrar. Sei que posso conter o curso das águas, mas nunca o do vapor que lançam no país e conforma o seu clima. E sobretudo não iria em peregrinação agradecer àquilo que é apenas uma técnica. Época idólatra da técnica, tanto mais quanto mais deplora a que o é em evidência, e mais abomina oficialmente o espírito, mais se refugia em adorar técnicas menos visíveis, mais espirituais. É sua sina viver ao lado do que é. E querer por isso impor a toda a realidade que viva o mesmo triste fado.

Alguns ajoelham-se perante a máquina de lavar e rezam. Outros ainda adulam os seus frigoríferos. São os idólatras dos instrumentos. Da parte que me toca vejo-os apenas como meus escravos, que tenho de vigiar para que me sirvam bem. São-me importantes porque úteis. Mas não me definem, não me comovem. Se me motivam, fazem-no apenas por mero interesse meu e do comum onde vivo.

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