Opinião
Entre o arbítrio e o futuro
Certo fim de tarde, na roda de amigos que se reunia no Café Chiado, Aquilino Ribeiro comentou: "O Salazar há-de estar morto, mas sempre vigilante porque empalhado." Queria dizer, o grande escritor, que estávamos marcados pela mesquinhez e...
Certo fim de tarde, na roda de amigos que se reunia no Café Chiado, Aquilino Ribeiro comentou: "O Salazar há-de estar morto, mas sempre vigilante porque empalhado." Queria dizer, o grande escritor, que estávamos marcados pela mesquinhez e pelo medo, inculcados pelo ditador. Durante anos estudei a vida do homem que dominou Portugal por meio século. O seu pensamento está, por inteiro, sem subtilezas, nos seis volumes dos "Discursos." Era um estilista notável, caldeado em Vieira e em Bernardes. O embaixador Franco Nogueira, numa entrevista que lhe fiz para uma revista, informou-me de que ele demorava, pelo menos trinta e seis horas, a redigir cada discurso, fosse pequeno ou de maiores dimensões. Quando bloqueava, folheava páginas dos "Sermões", e de alguma delas extraía a palavra, a locução ou a frase que o impulsionariam a prosseguir na sua própria prosa.
Ele aprendera, em experiência própria, tanto no seminário como nos ambientes lacustres de Coimbra, que frequentava com gozo e disciplina, que o português comum era supersticioso, estigmatizado pelo temor à Igreja e subserviente ante o poder político, o padre e o regedor. Estas características mantêm-se. As excepções são raras. O ferrete pascácio foi-nos imposto por essa cultura de escravo.
Sou do tempo, e ainda não há muito, na província em que o camponês se desbarretava, à passagem do patrão, a quem chamava amo. Há, em tudo isto, uma ignomínia pesada e trágica. Salazar deu continuidade a esse opróbrio intelectual, de que, na realidade, a I República, com toda a sua grandeza e generosidade, não conseguira extirpar. Nos dezasseis sobressaltados anos que durou a experiência republicana, não foram resolvidos, antes atenuados, os problemas novos que surgiam. Está por estudar, em profundidade, a influência dos grupos económicos no derrubar do regime.
Afonso Costa, tão vilipendiado pela Direita, tentou estabelecer prioridades, limitando a acção dos círculos políticos, económicos e religiosos que impediam a ordem natural revolucionária. O ódio irracional que muitos preopinantes manifestam, ainda hoje, pelo imenso político republicano é demonstrativo da imensidão do seu projecto.
O medo, o preconceito, a ignorância fazem, ainda hoje, e lamentavelmente, do arsenal que constitui o nosso edifício cultural. Há qualquer coisa de salazarento no espírito desta Direita que só escassamente se cultiva. No outro dia, creio que José Sócrates se serviu da expressão para ilustrar os desígnios dessa gente, em particular os da dr.ª Manuela Ferreira Leite. Aqui d'el rei!, gritavam arquejantes os panegiristas da senhora. Mas nenhum deles se preocupou em dilucidar a questão, em trocar por miúdos a afirmação de Sócrates. É próprio do salazarismo. Nada se discute. E um sector da sociedade portuguesa berra, gesticula, espalha poeira. Nada de concreto ou de útil.
O escasso discurso da chefe do PSD propicia todas as interpretações. O laconismo dela oculta, evidentemente, lacunas graves e desorientações estratégicas. Já se sabe o que o PSD quer, declamou, grave e sintético, o dr. Aguiar-Branco. Mas seria, talvez, bom que a senhora nos dissesse o que nos espera, caso ela ganhe. Pessoalmente, não auguro nada de bom. Até neste jogo de omissões reside algo de salazarista. O povo só deve saber aquilo que lhe interessa. A frase é do ditador. Em paralelismo comparativo, podemos tirar ilações. E de modo nenhum essas leituras podem ser consideradas injuriosas. Não foi a dr.ª Manuela quem sugeriu a interrupção, por seis meses, da democracia, a fim de se pôr a casa em ordem - e, depois, logo se via?
É neste "depois logo se via" que se adivinha a estrutura ideológica e intelectual da senhora. O Pacheco Pereira (a quem Eduardo Prado Coelho chamou "o pobre Pacheco") bem pode servir-se de toscos argumentos para defender quem assim pensa e assim fala. É inútil. A dama do PSD alimenta deslizes fatais. Além do que fornece a quem possui dois dedos de testa o retrato de uma pessoa incapaz, inepta e incompetente.
Já estou como o Amigo Banana: do outro, do Sócrates, já se conhecem o peso e a medida.
Nem é preciso falar do "programa" para se saber que o não vai cumprir. Mas do da doutora nada se divisa. Somente que vai rasgar tudo aquilo que José Sócrates até hoje fez. Claro que estas ameaças deixam o cidadão mais reticente com reticências ainda maiores. Esta senhora não serve. Ou serve, mesmo assim, como se apresenta? O seu gelado autoritarismo, comprovado nas exclusões de Passos Coelho e de Miguel Relvas, e nos pequenos tiques de fraseologia, possui a dimensão trágica de um assassínio dissimulado. São contra mim?, então, tomem! Queira-se ou não, é assim que se ensina nas aulas de ciência política. Não há que escapar.
Podemos confiar os nossos destinos numa mulher cuja intolerância e soberba atinge as zonas do arbítrio?
b.bastos@netcabo.pt
Ele aprendera, em experiência própria, tanto no seminário como nos ambientes lacustres de Coimbra, que frequentava com gozo e disciplina, que o português comum era supersticioso, estigmatizado pelo temor à Igreja e subserviente ante o poder político, o padre e o regedor. Estas características mantêm-se. As excepções são raras. O ferrete pascácio foi-nos imposto por essa cultura de escravo.
Afonso Costa, tão vilipendiado pela Direita, tentou estabelecer prioridades, limitando a acção dos círculos políticos, económicos e religiosos que impediam a ordem natural revolucionária. O ódio irracional que muitos preopinantes manifestam, ainda hoje, pelo imenso político republicano é demonstrativo da imensidão do seu projecto.
O medo, o preconceito, a ignorância fazem, ainda hoje, e lamentavelmente, do arsenal que constitui o nosso edifício cultural. Há qualquer coisa de salazarento no espírito desta Direita que só escassamente se cultiva. No outro dia, creio que José Sócrates se serviu da expressão para ilustrar os desígnios dessa gente, em particular os da dr.ª Manuela Ferreira Leite. Aqui d'el rei!, gritavam arquejantes os panegiristas da senhora. Mas nenhum deles se preocupou em dilucidar a questão, em trocar por miúdos a afirmação de Sócrates. É próprio do salazarismo. Nada se discute. E um sector da sociedade portuguesa berra, gesticula, espalha poeira. Nada de concreto ou de útil.
O escasso discurso da chefe do PSD propicia todas as interpretações. O laconismo dela oculta, evidentemente, lacunas graves e desorientações estratégicas. Já se sabe o que o PSD quer, declamou, grave e sintético, o dr. Aguiar-Branco. Mas seria, talvez, bom que a senhora nos dissesse o que nos espera, caso ela ganhe. Pessoalmente, não auguro nada de bom. Até neste jogo de omissões reside algo de salazarista. O povo só deve saber aquilo que lhe interessa. A frase é do ditador. Em paralelismo comparativo, podemos tirar ilações. E de modo nenhum essas leituras podem ser consideradas injuriosas. Não foi a dr.ª Manuela quem sugeriu a interrupção, por seis meses, da democracia, a fim de se pôr a casa em ordem - e, depois, logo se via?
É neste "depois logo se via" que se adivinha a estrutura ideológica e intelectual da senhora. O Pacheco Pereira (a quem Eduardo Prado Coelho chamou "o pobre Pacheco") bem pode servir-se de toscos argumentos para defender quem assim pensa e assim fala. É inútil. A dama do PSD alimenta deslizes fatais. Além do que fornece a quem possui dois dedos de testa o retrato de uma pessoa incapaz, inepta e incompetente.
Já estou como o Amigo Banana: do outro, do Sócrates, já se conhecem o peso e a medida.
Nem é preciso falar do "programa" para se saber que o não vai cumprir. Mas do da doutora nada se divisa. Somente que vai rasgar tudo aquilo que José Sócrates até hoje fez. Claro que estas ameaças deixam o cidadão mais reticente com reticências ainda maiores. Esta senhora não serve. Ou serve, mesmo assim, como se apresenta? O seu gelado autoritarismo, comprovado nas exclusões de Passos Coelho e de Miguel Relvas, e nos pequenos tiques de fraseologia, possui a dimensão trágica de um assassínio dissimulado. São contra mim?, então, tomem! Queira-se ou não, é assim que se ensina nas aulas de ciência política. Não há que escapar.
Podemos confiar os nossos destinos numa mulher cuja intolerância e soberba atinge as zonas do arbítrio?
b.bastos@netcabo.pt
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