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09 de Novembro de 2007 às 13:59

Dois presidentes pelo preço de um

A vitória de Cristina Fernández de Kirchner nas eleições presidenciais da Argentina dá início a uma experiência política que vai além das fronteiras nacionais: a dos “casais governantes”. Não é que os Kirchner tenham muita influência global.

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Mas parecem adiantar-se um ano ao dueto de poder que possivelmente será formado pelos Clinton nos Estados Unidos, o que lhes confere uma aura de importância que se estende muito para além da América Latina.

Néstor Kirchner, marido de Cristina e actual presidente da Argentina, não quis concorrer novamente, apesar de lhe ser legalmente permitido fazê-lo e de contar com uma intenção de voto superior à da mulher. Segundo o círculo mais íntimo dos Kirchner, ele quis evitar tornar-se um “pato coxo”, ou seja, passar pela experiência de perda de poder que normalmente sucede no final de um segundo mandato presidencial.

Esta pode ser uma possível explicação para a tão precoce passagem de testemunho à sua mulher. Na Argentina, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, a reeleição é ilimitada, desde que o presidente não exceda dois mandatos consecutivos no poder. Assim, dentro de quatro anos, Cristina poderá também não querer ser um “pato coxo” e passar o testemunho de volta a Néstor, que, por seu lado, o voltará a passar ao fim de quatro anos para evitar tornar-se um “pato coxo”, e assim por diante.
 
“Compre dois pelo preço de um”, gracejou Bill Clinton a propósito dos casais governantes quando concorreu pela primeira vez à presidência, em 1992. Néstor Kirchner não graceja. Em vez disso, anda atarefado a organizar um movimento político que estruture o seu plano. Ninguém acredita que uma estrutura destas possa estar desligada do governo, ou que Néstor se abstenha de tomar parte nas decisões da mulher enquanto presidente. Por isso, os argentinos, na verdade compraram “dois pelo preço de um”. Eles votaram na continuidade – o tema central da campanha de Cristina – porque a sua situação está muito melhor desde 2001, quando o país se encontrava em plena crise económica e política.

Talvez o ponto mais importante – e que constitui uma importante diferença face aos Clinton – seja o facto de esta experiência ter lugar num país que sofre de uma enorme vulerabilidade institucional. Néstor e Cristina vão estar a lidar com um parlamento bastante enfraquecido: as leis promulgadas pelos legisladores próximos do governo permitem ao presidente “corrigir” o orçamento e emitir decretos “de necessidade e urgência” que substituem as leis. Os Kirchner praticarão uma forma de hiperpresidencialismo.

Desde 2001, os Kirchner têm governado com uma mentalidade de quem gere um estado de sítio. Eles construíram uma imagem de autoridade e inflexibilidade moral, ao mesmo tempo que acabaram por sair beneficiados ao arranjarem inimigos condenados por todos e que não têm qualquer tipo de poder para agirem contra eles (o exército enfraquecido, por exemplo, ou os membros civis do governo de ditadura de 1976-1983). Tudo isto se fez acompanhar por uma intensa retórica populista: vozes ao alto e palavras de desafio, bem como promessas de lutar até à morte contra interesses económicos que nunca foram bem definidos.

Entretanto, as mudanças estruturais de que a Argentina precisa não foram feitas. A corrupção continua. A expansão económica surgida da crescente procura global de “commodities” – a Argentina está entre os principais exportadores de soja, milho, trigo e mel, por exemplo – resultou de uma transição na agricultura argentina que antecede os Kirchner: os antigos proprietários de terras deram lugar a operadores com competências de gestão.

O mérito dos Kirchner foi utilizar a riqueza decorrente das exportações para fortalecer a economia e melhorar as condições das classes média e baixa. Trata-se de um feito significativo. Mas a Argentina continua bastante dependente das “commodities” e não conseguiu incentivar a actividade económica com um modelo que aproveite a riqueza cultural e o engenho do seu povo. Além disso, a manipulação das estatísticas oficiais denuncia os problemas de um modelo económico baseado na desvalorização do peso argentino e na acumulação de reservas.  A principal preocupação é a inflação, que o governo encobriu e travou através de precários acordos de preços que não durarão muito tempo assim que Cristina assuma o poder.

Alguns responsáveis dizem que Cristina inaugurará uma nova era de maior qualidade institucional. Mas o problema dos “casais governantes” - na Argentina e, provavelmente, em qualquer parte do mundo - é que não estão consagrados em nenhuma lei ou Constituição democrática. É por isso que os Kirchner vão depender do secretismo. Néstor não terá publicamente qualquer atitude que dê a entender que existe um co-governo, mas ninguém acredita que ele ficará fora de cena.

A qualidade institucional e a falta de transparência não são compatíveis. Regra geral, a tomada de decisões está confinada a círculos cada vez mais restritos, com um nível de secretismo cada vez maior.  É o que acontece com os grupos de pessoas que apenas se relacionam entre si.  E isso levará a um enfraquecimento do capital genético da política. Mas este parece ser o estilo operacional diferenciador do Kirchnerismo, dividido entre uma elite nascida e criada na Patagónia, alguns aliados próximos e, por fim, todos os restantes. O seu relacionamento com a imprensa é semelhante. Só falam com os media controlados pelo Estado e nunca convocam conferências de imprensa.

O hiperpresidencialismo, a política de círculos e um plano para manter o poder indefinidamente através de uma tecnicidade jurídica: tudo isto poderá colocar os Kirchner ao mesmo nível que os “caudillos vitalícios” que o presidente venezuelano, Hugo Chávez, trouxe de volta à América Latina. Se Cristina quiser melhorar a qualidade institucional e os problemas que a economia já está a evidenciar, precisará de mais do que força. Acima de tudo, ela vai precisar de novas fontes de ideias.

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