Opinião
Discutir o fascismo
De vez em quando, a questão do fascismo português, se o foi ou não, reacende uma polémica que deixou de fazer sentido. Claro que houve, em Portugal, uma variante do fascismo, como variantes o foram na Roménia, em Espanha, no Brasil, no Chile no Uruguai e
De vez em quando, a questão do fascismo português, se o foi ou não, reacende uma polémica que deixou de fazer sentido. Claro que houve, em Portugal, uma variante do fascismo, como variantes o foram na Roménia, em Espanha, no Brasil, no Chile no Uruguai e um pouco por toda a América Latina. Esquírolas fascistas manifestaram-se, em épocas distintas, nos Estados Unidos. Basta ler e possuir honra intelectual, por escassa que seja.
Há duas semanas, Vasco Pulido Valente enxovalhou, no "Público", a jornalista do mesmo matutino São José Almeida, por esta ter aludido ao assunto, tendo como base o movimento cívico Não Apaguem a Memória; e desancou com a sobranceria que lhe está colada à natureza, o dirigente político comunista Vítor Dias.
O revisionismo não deixou de estar na moda e obedece a imperativos ideológicos de que o nosso tempo é fértil. Frequentando (mesmo com discreta assiduidade) historiadores como Renzo De Felice ou Ernst Nolte, ou ler, por exemplo, "Une Generation dans l’Orage", de Brasillach; "Les Memoires d’un Fasciste", de Lucien Rebatet; "Journal - 1939/1945", de Drieu La Rochelle; ou "Le Tournant", de Klaus Mann, apercebemo-nos da índole metastásica do fascismo, e da tendência de uma "revisão" da História, que vai ao extremo de negar o Holocausto.
A bibliografia entre nós publicada é, também, volumosa, e fornece indícios capazes de se estudar e avaliar a dimensão do fascismo português, das bases filosóficas sobre as quais assentou a sua doutrina, e da ideologia que lhe foi própria. Salazar tinha, na secretária, o retrato autografado de Mussolini, e copiou a químico as características do regime italiano, colorindo-as com umas aguareladas nazis. A Igreja, que abençoara Hitler, Mussolini e Franco, persignou, com transporte e unção, o seminarista de Santa Comba. Designar os quarenta e oito anos por que Portugal viveu, de amena ditadura conservadora e católica, constitui uma indignidade de quem assim formula, e um ultraje inqualificável aos milhões de portugueses sacrificados pela violência do regime - fascista, é bem de ver!
Tudo isto está escrito em livros, documentado em filmes, fixado em depoimentos, estudado por historiadores não inebriados pelo ar do tempo. É ocioso, por inútil, negar a evidência dos argumentos. Mas não o será, porventura, reavivarmos a memória - para que as coisas não voltem a acontecer. Foi George Santayana, e não Marx, quem escreveu: "Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo".
É impossível limpar a superfície ideológica do fascismo português, assim como é extraordinária a relativa impunidade de que a Igreja beneficiou, tanto na demonologia da Esquerda, como na crítica dos católicos "progressistas", alguns, agora, muito propensos à escrita beata, admitidamente apavorados com a proximidade da morte. É curioso: ambicionam ir para o céu, mas não querem morrer.
O fascismo teve ideólogos, doutrinadores, filósofos e arautos que procuraram justificar a necessidade histórica do seu fundamento. Porém, o antifascismo não obedeceu a uma corrente ideológica; foi, antes de tudo, uma frente moral que reuniu comunistas, socialistas, anarquistas, monárquicos, republicanos, católicos e crentes de outras confissões, ateus, agnósticos e maçons. O fascismo nunca experimentou inibições lógicas ou morais: valeu-se de tudo, sem limites nem pudor, para se perpetuar no poder e rudemente impor a desvalorização do humano. Os testemunhos dos presos políticos submetidos às mais atrozes torturas são particularmente eloquentes.
Negar a existência e a prática do regime fascista, que dominou o País durante quase meio século, é contribuir para que as raízes do mal persistam e se continuem, através de "idiotas úteis", que desacreditam os utensílios históricos por eles pretendidamente utilizados, e agem através do recurso a superstições ou a desejos confundidos com a realidade.
O movimento Não Apaguem a Memória parece ter sacudido a tradicional inércia dos governos. E um gabinete técnico, constituído por algumas das grandes figuras morais da luta antifascista, está a conceber um memorial dos presos políticos. Não faz mal, e é um acto pedagógico importante, referir, estudar, analisar o período político que mediou entre 1926 a 1974. E talvez a assunção de que o regime foi mesmo de natureza fascista possa levar a reflectirmos sobre a nossa colectiva responsabilidade histórica. De uma forma ou de outra, somos sempre culpados de qualquer parte do corpo do totalitarismo, seja ele de que espécie e de que qualidade for.
A impugnação da verdade corresponde a um acto canalha. Entende-se que os adeptos do colaboracionismo fascista não desejem ser apontados à execração. Num admirável ensaio, hoje clássico, "L’Illusion Fasciste", Alastair Hamilton esclarece: "A ligação feudal do colaborador ao seu amo possui um aspecto sexual. O estado de espírito da colaboração adivinha-se como um clima de feminilidade. O colaborador fascista fala em nome da força, mas ele não é a força: é a manha, a astúcia que se apoia na força". De certa forma, assim pode ser justificável a posição dos que defendem a inexistência de um fascismo português. As ambivalências de carácter ocultam, habitualmente, um espírito perverso e um temperamento fisiologicamente dúbio.
O fascismo português foi, como todos os outros, uma forma específica do estado de excepção numa sociedade capitalista. Apoiado pelo grande capital e pelos grandes senhores do latifúndio, acentuou, sistematicamente, a hierarquia dos salários, e organizou (com extrema eficácia, diga-se) a divisão da classe operária, cuja crise ideológica se tornou cada vez mais evidente e intensa. É concebido como contra-revolução, forma clássica de ideologia, emergente num particular período de crise europeia. Nicos Poulantzas explica, num ensaio fundamental: "Fascisme et Dictature".
No estudo destes problemas surge, inevitavelmente, um rancor ideológico e um ressentimento pessoal de culpa, que obnubilam o esclarecimento, causando danos prolongados à pedagogia que a História exige e comporta. Vasco Pulido Valente é um homem inteligente e um historiador fascinante, amiúde imprescindível. Nele não habitam nem a escassez de informação nem a tonteria alucinada. Ele sabe muito bem (até por fundamentos de ordem familiar) que o fascismo teve, em Portugal, uma vertente assaz violenta, cuja composição detinha uma dose importante de clericalismo e, por igual, uma parcela de obediência aos interesses económico-financeiros, tutelados por vagas aspirações nacionalistas.
Que pode levar um intelectual como Pulido Valente a expor-se a estas situações patéticas?, perguntei, há dias a um amigo comum, que me respondeu: "O gosto da provocação e o prazer da contracorrente".
Não chega. E não chega a prestar.