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Baptista Bastos - Cronista b.bastos@netcabo.pt 22 de Fevereiro de 2008 às 13:59

Derrapagens morais e as outras

“Derrapagem” é um substantivo, aparentemente inócuo, e apenas destinado a definir um azar na patinagem ou a manobra automobilística mais desusada. Porém, carrega um peso inquietante, se atentarmos na sua natureza “política.” Assim, “derrapagem” implica la

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Um pertinente texto de Lucília Tiago e Ricardo David Lopes, publicado no “Jornal de Notícias” [18. Fevereiro, p.p.], revela, ao leitor distraído, que um estudo a setenta e três obras públicas houve “derrapagem” em sessenta e nove. Num país onde a Justiça correspondesse ao conceito cívico, comum às sociedades democráticas, as coisas não ficariam pelo anúncio dos números. Alguém iria, certamente, malhar com os ossos na cadeia. Em Portugal, duvida-se.

Em depoimento ao importante matutino do Porto, o dr. Guilherme de Oliveira Martins, presidente do Tribunal de Contas, disse que aquela instituição “está, neste momento, a fazer um conjunto de auditorias que visa apurar as razões, que podem ser as mais variadas: erros de previsão, maus cálculos do valor das obras, abusos, gestão danosa, alteração das circunstâncias.”

Oliveira Martins é tido e havido por homem sério, intelectualmente íntegro e cidadão exemplar. Não é nunca de mais acentuar estas virtudes, que seriam comuns, acaso a sociedade portuguesa existisse e preservasse princípios e valores de probidade. E a formulação das deficiências por ele apontadas, embora com elegância e sobriedade, é de molde a assustar-nos.

A “Revista do Tribunal de Contas” vai publicar uma tese de doutoramento que denuncia algumas de essas “derrapagens.” Eis algumas: o Túnel do Rossio apresentou um valor inicial de 49,5 milhões de euros. Pois bem (pois mal), custou (custou-nos) 59 milhões. O Metro da linha Baixa-Chiado-Santa Apolónia devia importar em 165 milhões. Soma final: 299 milhões. A Casa da Música (aliás um edifício belíssimo, por original e arrojado) tinha um valor de 16,25 milhões de euros. Sabe quanto custou? 111,9 milhões. Os números da Ponte Europa, em Coimbra, são: 35 milhões, no começo; 111,38 milhões no final. Para a construção do Aeroporto Sá Carneiro estavam previstos valores na ordem de 45 milhões. Quando foi dado por concluído, o aeroporto custou 280 milhões. A lista é medonha.

Entrou-se nos domínios do deixa andar, deixa passar. Não me ocorre nenhum caso de exigência de responsabilidades. Porém, como tenho o dr. Guilherme de Oliveira Martins em alta conta, aguardo, com ansiedade, que haja resultados e acções concretos, logo-assim sejam apuradas imputações.

Pessoalmente, creio que o novo Código dos Contratos Públicos não irá resolver, substancialmente, o gravíssimo problema. É uma questão de honra, de civilidade, de alteração radical das mentalidades, propensas à indiferença que a própria natureza da Justiça actual estimula e até consagra. O presidente do Tribunal de contas reconhece: “O novo Código pode permitir uma alteração positiva do actual estado de coisas, mas o país não se muda por decreto – é fundamental que as práticas mudem, que a concorrência funcione e que se penalize a cartelização.”

A “cartelização” é, de facto, um dos males da nossa vida pública. Constituindo uma espécie de “trusts”, ela é como um poderoso polvo, cujos tentáculos se estendem e se escondem sob diversas formas. Aliás, as obras públicas representam uma inesgotável fonte de negócios. Seria curial investigar-se a origem de fabulosas fortunas “construídas” através de concursos duvidosos e do jogo malabar do tráfico de influências.

A economia “global” propicia a criação de situações irredutíveis. Exactamente porque autoriza e consente o aparecimento de sociedades e empresas subdivididas, que se exercem nos mesmos contextos, com fortes apoios políticos, os quais, a seguir, beneficiarão dos apoios económicos que beneficiaram. Os universos da “construção” e do “imobiliário” são conexos. E, em muitos países, movem-se nas sombras e cometem actos absolutamente condenáveis. Portugal não escapa à regra. As “derrapagens” são consequência, não origem. E Oliveira Martins não escamoteia: “Os países mais desenvolvidos, com finanças sãs e estáveis, tendem a resolver esse problema. Não há razão para que Portugal também o não faça.”

A questão fundamental da educação, num mundo cada vez mais flutuante e competitivo (no pior sentido do termo), pode alterar, substancialmente, o estado das coisas. Erguem-se, aqui, o conceito dos valores e a exigência de se estabelecerem padrões mínimos de eficiência, que estanquem a ganância desenfreada. O problema não se resolve por via administrativa. Penso, no entanto, que, através de um novo contrato social, as partes envolvidas possam enfrentar os dilemas emergentes. As “derrapagens” também existem por incapacidade de darmos uma tradução social, política, económica e moral à transformação do elo, actualmente em voga, que faz da aceitação e da indiferença, a pior das servidões.

Pessoalmente, ainda creio, apesar de tudo me incitar ao contrário, que há homens de bem. Mas é preciso não ficarmos inertes. Estimulá-los, inclusive com o nosso protesto. Para que se não resignem.

APOSTILA – Há setenta anos foi editada uma das mais importantes novelas da literatura portuguesa: “Sedução”. O autor, José Marmelo e Silva [1911-1991], alargava o perímetro da narrativa portuguesa com um talento pouco vulgar. “Sedução”, como parte substancial da obra do escritor, constituía um requisitório contra os universos concentracionários, fossem eles o seminário, o quartel ou o próprio País. Uma densa tessitura erótica, uma observação que se não quedava pela vulgata do “psicologismo”, então muito em voga, e grande audácia temática sacudiram as bem-pensâncias. A sétima edição da novela de Marmelo e Silva foi agora reeditada pela prestigiosa casa Campo das Letras. É bom recuperar os grandes textos portugueses, numa época em que escreventes se dizem escritores, enquanto os escritores estão reduzidos a uma espécie de resistentes, habitantes num reduto cercado. É atentar na mixórdia que os suplementos “culturais” editam; a promoção sistemática a um baixel de medíocres; a impenetrabilidade da “crítica” – e teremos um retrato aproximado da vida “literária.” Dilecto: por favor, leia este belíssimo livro. Aqui não há derrapagens.

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