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Deriva de um não-turista

A Internet tem exercido uma enorme influência no mundo. Ainda que para alguns a net continue a ser vista como uma brincadeira para crianças ou um motor de busca de pornografia, na verdade ela encontra-se no centro...

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A Internet tem exercido uma enorme influência no mundo. Ainda que para alguns a net continue a ser vista como uma brincadeira para crianças ou um motor de busca de pornografia, na verdade ela encontra-se no centro da vida das empresas, das profissões, do saber, das relações sociais, das práticas de toda a ordem e objecto. Esta é definitivamente a Idade da Internet.

Contudo, a sua influência no campo cultural é ainda bastante limitada. Não refiro a componente divulgação, pois, como se sabe, a Internet é hoje o palco por excelência de promoção de qualquer evento cultural. Falo sim das implicações conceptuais da Internet nas artes e na criatividade em geral. Para além de alguma arte especificamente realizada para este meio ou do desenvolvimento de software criativo, a abordagem corrente da cultura fica-se normalmente pelo formalismo ou pelo oportunismo, ou seja, usando o novo meio para promover velhas concepções.

No campo literário isso é particularmente notório. Seja porque a maioria dos escritores ainda olha para o computador como uma simples máquina de escrever e até hoje não compreendeu o efectivo alcance civilizacional das novas tecnologias, seja porque o conservadorismo se estabeleceu nas "letras" como forma de resistência pretensamente humanista contra o domínio da tecnocracia e das máquinas. Assim, são poucos os exemplos de livros que reflectem a nova condição cultural gerada pela Internet. Na maioria dos casos ficando-se aliás por um escrever à maneira dos blogues ou enchendo páginas com referências encontradas no Google.

Não é esse o caso dos livros de Henrique Garcia Pereira. A sua escrita procura recriar em páginas de papel o ambiente da Internet, ou seja, o hipertexto. É assim uma escrita com múltiplas camadas, quer no corpo principal do texto - onde se misturam histórias pessoais com dados científicos, eventos reais com ficções -, quer na profusão de notas, notas dentro de notas, anexos e muitas imagens. Um tal emaranhado de blocos significantes pode parecer à primeira vista como de leitura impraticável, mas, pelo contrário, a escrita de Henrique provoca uma imersão muito aliciante e envolvente na própria complexidade de que se faz de facto o mundo e a nossa vida nele.

O seu mais recente projecto intitula-se "Fragmentos do Mediterrâneo". Trata-se de uma viagem multidimensional, como o autor lhe chama, pela orla mediterrânica da Grécia a Tavira, passando por Itália, França e Espanha. Com dezasseis capítulos a obra é proposta pela Editorial Teorema em três volumes, de que acaba de sair o segundo. Divisão que não tem qualquer implicação no prazer da leitura já que cada volume se completa a si mesmo.

Embora se trate de um livro de viagens, não se enquadra no género. Desde logo porque não segue a receita habitual de destaque dos lugares comuns - os monumentos, os lugares a visitar, os hotéis, os conselhos triviais - e, ao invés, trata do lateral, do que raramente é mencionado, de factos e existências singulares. Depois estamos definitivamente no campo oposto do turismo. Nem o autor é turista nem o promove. Aliás, partilho a convicção de que o turismo é a procura do já conhecido e só muito acidentalmente o instante da aventura.

Nessa perspectiva de destacar também que Henrique Garcia Pereira não tem qualquer apreço pela "natureza" e aos pedregulhos e à clorofila prefere os cafés, as praças, a teia urbana. Numa determinada altura da narrativa quando se vê obrigado a acampar nos arredores de Roma procura um lugar com vista para os prédios. Noutra, em que se vê levado a visitar alguém que vive numa cabana na montanha, dá-se mal e só pensa em regressar à cidade.

Mas aquilo que mais me fascina nos livros de Henrique Garcia Pereira é a sua utilização das imagens. Ao contrário dos livros de viagens e da promoção turística, infestados pelos belos ângulos, neste caso as fotos são de péssima qualidade, por vezes desfocadas, revelando detalhes mais do que espectaculares enquadramentos. Esse ambiente visual, fruto do instantâneo, da objectiva comum e barata, resulta num efeito supremo de realidade. Nesse sentido considero estes livros como verdadeiras obras de arte, na linha do que de melhor se tem feito na aplicação das imagens fotográficas na arte contemporânea.
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