Opinião
Crónica da meia-noite
Lojas de bairro fechadas, apartamentos para venda, uma soturnidade que nos tolhe, nos embaraça e entristece quando passamos pelas ruas de Lisboa.
Lojas de bairro fechadas, apartamentos para venda, uma soturnidade que nos tolhe, nos embaraça e entristece quando passamos pelas ruas de Lisboa. Parte da minha juventude decorreu aqui e ali, conheço a cidade como poucos. Até pelo cheiro eu sabia onde estava. Anos substanciais, que me marcaram definitivamente, passei-os neste bairro, outrora de jornais, agora de bares e de lojas de modas. Há algo de absurdo nestas alterações, algo que nos diz da dolorosa impressão que estoutro tempo nos causa. Perguntava, há dias, um leitor de jornal: "Mas as coisas estão melhores?" Digo sempre que o nosso tempo é aquele em que vivemos, mas não é bem assim; sorrio para mim próprio, mas não é bem assim.
Cá em casa, todos dormem. Escrevo na meia-noite e em minha frente estão os retratos dos que me são queridos e que, de uma forma ou de outra, iluminaram a minha vida. Agora, é o meu neto, o Francisco, que me olha com malícia e atenção. Digo-lhe, dizendo para mim: força, miúdo, isto é difícil, ah!, tão difícil, mas vale a pena. O dia foi a rotina vulgar: comprei os jornais, sentei-me na leitaria a lê-los, a leitaria possui uma enorme vitrine e vêem-se as pessoas caminhar para os seus destinos certos. Às vezes, escrevo nesta mesa. As pessoas olham-se, discretas, quando reparo cumprimentam-me com um gesto e sorriem.
Em tempos, o Augusto Abelaira vinha para aqui escrever. Já estava muito mal, perdera o cabelo quase todo, mas mantinha aquele ar decente e bondoso que o acompanhou até ao fim. "Fui apanhado de lado", disse-me certa tarde. Respondi-lhe que, de um modo ou de outro, todos somos apanhados de lado, e que a vida é, como diz a Isaura, um constante processo de reconstrução. A doença espreita-nos e todos padecemos de qualquer coisa que nos aflige.
Ontem, fui gravar um depoimento sobre o Alves Redol, que fez cem anos, como o Manuel da Fonseca, sobre a data do seu nascimento (A frase não está muito correcta, mas é assim que a quero, desculpem). O realizador do documentário marcara o Jardim da Estrela como local de encontro. Acabámos por filmar no terraço da casa de um amigo dele, uma beleza de casa, com uma panorâmica do Tejo como há muito não via. Fui de táxi. O homem do táxi, largos ombros, cabeça teutónica, falou das coisas do mundo. "Que idade tem o senhor?" Disse-lhe a minha idade. Ele sorriu todo feliz. "A idade do condor." Percebeu que eu não percebera. Esclareceu: "Com dor; com dor todo o dia e por todos os lados. Com dor." Rimos. O homem pusera-me quase jubiloso. Pensei: "um dia destes tenho de escrever o episódio."
Agora, é meia-noite e sinto o respirar pausado da minha gente. Doem-me um pouco as pernas. Nestes últimos tempos fatigo-me com irremediável facilidade. A idade do condor. Não é relevante. Fiz sempre o trabalho que quis fazer. Batuco prosa há um ror de anos, e creio, modestamente creio, que algumas vezes acertei. Acertei e fiquei muito feliz. Direi, mesmo, que sou um homem feliz. Casado, bem casado, três filhos, e há meses, este neto sorridente, rodeado de amor e de ternura. É muito bom ser avô. Você verá, quando o for.
Numa entrevista recente perguntaram-me se a morte me assustava, tendo em conta a minha idade. Não é pergunta que se faça; ou é? Não sei bem, mas a verdade é que não me molestou.
Respondi que não pensava nessas coisas porque sentia que iria viver muitos mais anos. E iria viver muitos mais anos porque trabalhava, trabalhei quase sempre, num trabalho de que gosto e que me preenche.
Por exemplo: se nunca me cansei com o que escrevo, nunca me cansei com o que leio. Sou um leitor permanentemente acicatado pela curiosidade. E aprecio indicar títulos de livros e nomes de autores que me estimulam. Porém, quando leio depoimentos nos jornais acho as pessoas que falam muito anchas de si mesmas, e dizem coisas absurdas e tolas, presumindo que são importantes. Depois, penso: sempre foi assim: os mais novos a pensar que descobriram o mundo. É assim e ainda bem que assim é e assim sempre será. As rotações são iguais à de sempre, as ideias de salvação do mundo animam os melhores de todas as juventudes, uma geração vai e uma geração vem, como ensina o Eclesiastes e A Isaura está postada no umbral:
"Vem deitar-te. É tarde."
b.bastos@netcabo.pt
Cá em casa, todos dormem. Escrevo na meia-noite e em minha frente estão os retratos dos que me são queridos e que, de uma forma ou de outra, iluminaram a minha vida. Agora, é o meu neto, o Francisco, que me olha com malícia e atenção. Digo-lhe, dizendo para mim: força, miúdo, isto é difícil, ah!, tão difícil, mas vale a pena. O dia foi a rotina vulgar: comprei os jornais, sentei-me na leitaria a lê-los, a leitaria possui uma enorme vitrine e vêem-se as pessoas caminhar para os seus destinos certos. Às vezes, escrevo nesta mesa. As pessoas olham-se, discretas, quando reparo cumprimentam-me com um gesto e sorriem.
Ontem, fui gravar um depoimento sobre o Alves Redol, que fez cem anos, como o Manuel da Fonseca, sobre a data do seu nascimento (A frase não está muito correcta, mas é assim que a quero, desculpem). O realizador do documentário marcara o Jardim da Estrela como local de encontro. Acabámos por filmar no terraço da casa de um amigo dele, uma beleza de casa, com uma panorâmica do Tejo como há muito não via. Fui de táxi. O homem do táxi, largos ombros, cabeça teutónica, falou das coisas do mundo. "Que idade tem o senhor?" Disse-lhe a minha idade. Ele sorriu todo feliz. "A idade do condor." Percebeu que eu não percebera. Esclareceu: "Com dor; com dor todo o dia e por todos os lados. Com dor." Rimos. O homem pusera-me quase jubiloso. Pensei: "um dia destes tenho de escrever o episódio."
Agora, é meia-noite e sinto o respirar pausado da minha gente. Doem-me um pouco as pernas. Nestes últimos tempos fatigo-me com irremediável facilidade. A idade do condor. Não é relevante. Fiz sempre o trabalho que quis fazer. Batuco prosa há um ror de anos, e creio, modestamente creio, que algumas vezes acertei. Acertei e fiquei muito feliz. Direi, mesmo, que sou um homem feliz. Casado, bem casado, três filhos, e há meses, este neto sorridente, rodeado de amor e de ternura. É muito bom ser avô. Você verá, quando o for.
Numa entrevista recente perguntaram-me se a morte me assustava, tendo em conta a minha idade. Não é pergunta que se faça; ou é? Não sei bem, mas a verdade é que não me molestou.
Respondi que não pensava nessas coisas porque sentia que iria viver muitos mais anos. E iria viver muitos mais anos porque trabalhava, trabalhei quase sempre, num trabalho de que gosto e que me preenche.
Por exemplo: se nunca me cansei com o que escrevo, nunca me cansei com o que leio. Sou um leitor permanentemente acicatado pela curiosidade. E aprecio indicar títulos de livros e nomes de autores que me estimulam. Porém, quando leio depoimentos nos jornais acho as pessoas que falam muito anchas de si mesmas, e dizem coisas absurdas e tolas, presumindo que são importantes. Depois, penso: sempre foi assim: os mais novos a pensar que descobriram o mundo. É assim e ainda bem que assim é e assim sempre será. As rotações são iguais à de sempre, as ideias de salvação do mundo animam os melhores de todas as juventudes, uma geração vai e uma geração vem, como ensina o Eclesiastes e A Isaura está postada no umbral:
"Vem deitar-te. É tarde."
b.bastos@netcabo.pt
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