Opinião
Crédito Ninja
Não sei por que razão me custa tanto espreitar o mundo lá fora através das janelas. Corri as persianas como se me defendesse das ameaças externas, de repente noite todo o dia. Talvez as contas à vida me tenham levado as forças. E nem muitas razões de quei
Bem vistas as coisas não me falta muito para uma existência sossegada: gabo-me de ser uma funcionária exemplar, que o digam as chefias lá da repartição; um emprego razoavelmente estável sem grandes sobressaltos; uma saúde que se recomenda, enfim, se descontar um achaquezinho de quando em vez; uma ocasional saída à noite com o António (gostava de gostar dele, custa-me imaginar deixá-lo, a gente habitua-se a este viver e não muda); e esta casa em Mem Martins. Ainda me lembro do dia em que a visitei pela primeira vez, o entusiasmo ao subir as escadas, o T1 a estrear com vista para o parque. Talvez tenha sido a paisagem urbana que mais me fascinou, imaginar-me ali a assistir às vidas a desenrolar-se por debaixo do parapeito.
Somas e subtracções, idas e vindas do banco, a mais difícil decisão da minha vida. Pela primeira vez ia ser proprietária. Ainda não estava em mim quando entrei no apartamento, quando dormi pela primeira vez sob o meu próprio tecto. Só eu sei as dificuldades, a ginástica necessária, para não falhar uma prestação. Durante cinco anos o cumprimento irrepreensível e agora isto.
Nem queria acreditar quando o Jorge, colega do departamento financeiro, me contou como funcionava o crédito Ninja, até apontei o significado, deixa-me cá ver, exactamente: “no income, no job or assets”, crédito concedido para compra de habitação a pessoas sem rendimentos, sem emprego ou bens. Pelos vistos aliciavam-nos com taxas de juro incrivelmente baixas durante um período de três anos até que a taxa começava a disparar. Aquela pobre gente deixava de poder pagar, perdiam os lares. Pelo que consta, os bancos accionavam as hipotecas das casas que, entretanto, se haviam valorizado. Um grande negócio. A mim custa-me crer que possa haver quem se aproveite assim das pessoas desprotegidas pela sorte. O meu colega garante-me que sim, que o problema lá na América foi a quebra do imobiliário, as casas ao fim dos três anos a valerem menos, o grande negócio a ir por água abaixo. Num ápice o pânico e tantos envolvidos no esquema. As taxas de juro a subir por todo o lado. Mas, não me convenceu, só pode ser invenção do Jorge, sempre me pareceu muito aéreo.
Podia lá ser, bem sei que não tenho estudos, bem sei que não tenho o hábito de ler jornais, mas não acredito. Lá por que os bancos americanos se viram em maus lençóis com o crédito – como é que se chama aquilo, coisa mais de japoneses, ou chineses, ou lá o que é – Ninja, é isso mesmo, crédito Ninja, como poderia isso ter influência no valor da minha mensalidade? E no entanto aqui estou barricada na minha própria casa. Tenho as persianas fechadas, não atendo o telefone (pelo menos tenho uma boa desculpa para ignorar o António), receio que me liguem para me levar o apartamento. Talvez devesse ir ao banco, explicar que se trata de um percalço momentâneo, que mais uns dias e os pagamentos sem falha, mas o que me custa, o que me rouba o sono à noite, é olhar para o valor da mensalidade ouvir que as taxas vão subir ainda mais, perceber que não tenho rendimentos suficientes para suportar este aumento e não consigo deixar de pensar nos outros lá na América, imaginar que não tarda acontece-me o mesmo, não tarda estão aí para me levar a casa, a única coisa de que sou proprietária.
Sentia-me bem neste apartamento, gostava de me sentar na sala, como se um posto de observação, assistindo à vida a decorrer à minha volta. O meu canto, tudo para ser feliz. Não sei por que razão me fechei neste casulo, mas não quero que cheguem os Ninja e me tirem o que é meu.