Opinião
Literatura? Não tem interesse!
As alminhas que decidem o “que o público gosta” podem bem dormir descansadas no conforto dos sabedores de vacuidades, não entendem, não entenderão jamais, que a banalidade, a boçalidade, maça, é efémera.
Pegar na pena e evocar o senhor David Lassman, sentir neste cavalheiro britânico uma alma gémea, um cavaleiro da estória redonda. Agradecer-lhe o serviço prestado à literatura nascitura, desmascarando o soturno e enviesado percurso de escolha dos manuscritos capazes de aceder ao Olimpo da publicação. Ler no jornal a notícia da sua façanha, qual Colombo batendo com o ovo na mesa garantindo a sua imobilidade vertical. O senhor Lassman talvez às voltas com os livrinhos tão pobrezinhos nos escaparates das livrarias; o senhor Lassman tomado pela ideia luminosa, copiando integralmente “orgulho e preconceito”, socorrendo-se da genialidade de Jane Austen, apresentando o manuscrito como se original a 18 das mais importantes editoras do Reino Unido. A resposta na volta do correio: recusado. Todas as editoras, todas, rejeitando o manuscrito, explicando paternalmente, pateticamente, que o manuscrito não “tinha interesse”.
Houvesse um Lassman por cá, um Silva, pegando no Eça, no Camilo, sujeitando o texto às nossas editoras e por certo a mesma resposta, sobranceira, “não tem interesse”. No mundo pequeno e triste destes brilhantes decisores, claro que “não tem interesse”. Quem, afinal, está interessado numa estória, numa boa estória, contada com requintes literários? Quem poderá sentir pena da estória, sucumbindo agoniada perante a nova moda, perante os livros não já de cordel mas de vinte e cinco linhas (tantas quantas as palavras utilizadas). Quem poderá estar interessado numa boa estória, bem contada, quando as atenções se centram em criaturas como a senhora Victoria Beckham – ela própria putativa estrela dos livros, anunciando (ameaçando) uma futura edição de um livrinho para crianças – assumindo a posição de intelectual dos tempos modernos, de ícone da nova geração, garantindo com enfado, em entrevista à revista “Pública”, “aborrece-me que as pessoas usem sempre a mesma roupa”. A senhora Beckham, extraordinário fruto dos “dotes” acéfalos promovidos por estes dias.
Quem poderá estar interessado numa boa estória, contada com génio, quando o que “está a dar” são as vidinhas horripilantes e vazias dos “famosos”, vertidas em ridículas “biografias”, salpicadas de escândalos contados apressadamente para voyeurs basbaques e burgessos. Quem poderá estar interessado numa boa estória, num rendilhado de palavras, num hino à escrita, quando o que conta são as obras de “auto-ajuda”, papeluchos explicando “como ter amigos”, “como ter sucesso” e quejandos livrecos insinuando uma facilidade tamanha, como se a felicidade tivesse um guia encadernado em versão revista e aumentada.
Estivesse aqui um destes iluminados seleccionadores do gosto e não perderia tempo, trazendo a lengalenga costumada, assegurando que se limitam a oferecer aos consumidores o que estes desejam. As alminhas que decidem o “que o público gosta” podem bem dormir descansadas no conforto dos sabedores de vacuidades, não entendem, não entenderão jamais, que a banalidade, a boçalidade, maça, é efémera. No final, o que fica são as grandes obras, as manifestações do génio, as estórias escritas com mestria. Desconhecem o valor da descoberta de nomes maiores da escrita em qualquer projecto credível de edição. Ignorando até – suprema ironia – a importância na estratégia de ‘marketing’ destas descobertas. Agora mesmo, talvez um novo Dostoievski, um novo Camões, esteja sendo recusado por um destes novos Torquemadas do gosto, riscando, com poder, no canto superior direito do manuscrito: sem interesse.