Opinião
Brasil: A Guerra da Bandidagem
A guerra da bandidagem em São Paulo veio reforçar a extrema desconfiança da maioria dos brasileiros quanto à capacidade do estado garantir a segurança dos cidadãos que ficara já claramente expressa no referendo de Outubro do ano passado quando 64 por cent
As iniciativas governamentais para apreensão e entrega voluntária de armamento ilegal - cerca de nove milhões de armas circulam no Brasil, estando sensivelmente metade na posse de criminosos - tinham sido bem recebidas e a ligeira diminuição de mortes por armas de fogo, de 39 mil mortos em 2003 para 36 mil vítimas em 2004, era outro dado positivo a considerar numa expectativa de vitória da proibição.
Esta diminuição na violência com armas de fogo, no entanto, advinha, sobretudo, de uma quebra no número de assassínios por motivos passionais e de rixas pessoais, enquanto se agravavam as acções dos bandos ligados ao crime organizado que assumem um carácter cada vez mais centralizado por via do peso que tem nas suas actividades o tráfico de droga e de armas.
Uma campanha assente no direito à autodefesa ante a impotência policial e a generalização da ideia de que os bandos criminosos subsistem e prosperam por conta das drogas e do tráfico de armas, acumulando arsenais independentemente do regime legal de venda, acabou por condenar ao fracasso a proibição em referendo.
Ascenso do crime organizado
Os sucessivos motins nas cadeias, a persistência de exacções, corrupção e violências policiais, uma taxa muito baixa de êxito na resolução de crimes - cerca de dez por cento a nível nacional - e uma diminuição nas verbas canalizadas pelo governo federal e pelos executivos estaduais e municipais para as forças de segurança e o sistema prisional têm vindo a fragilizar a capacidade de resposta aos bandos organizados nos grandes centros urbanos.
A nível federal o programa de construção de novas penitenciárias de segurança máxima, com capacidade para mil presos, está atrasado e das cinco que deveriam ser completadas até ao final deste ano apenas três estarão prontas. Uma «legislação penal caótica», no dizer do presidente da Associação de Juízes Federais, Jorge Maurique, aguarda revisão praticamente desde a adopção da Constituição de 1988.
A instalação de sistemas bloqueadores de telemóveis nas prisões paulistas, por sua vez, tão pouco foi concretizada, apesar de constar de uma lista de medidas anunciadas pelo governo estadual após as revoltas de Fevereiro de 2001.
No mais populoso e rico estado do país doze anos de administração do Partido da Social-Democracia Brasileira saldaram-se por um reforço das medidas securitárias e uma quebra no crime violento, mas, ainda assim, aumentou o poder armado e financeiro do crime organizado e a situação prisional deteriorou-se devido ao crescimento da população carcelária (cerca de 40 por cento dos 140 mil presos do Brasil concentram-se no estado) cada vez mais sujeita ao controlo dos bandos.
A violência desencadeada pelo bando Primeiro Comando da Capital surpreendeu as autoridades paulistas que subestimaram as informações de que dispunham acerca da iminência de uma vaga de ataques e rebeliões prisionais em resposta à transferência de 765 detidos para uma unidade penitenciária mais rigorosa a cerca de 600 quilómetros da capital estadual, enquanto oito dirigentes do bando eram isolados para novos interrogatórios e posterior detenção em prisões de alta segurança.
Desde que o principal bando paulista começou a ganhar contornos de organização altamente centralizada nos finais dos anos noventa, coordenando as directivas de líderes detidos com a actuação de elementos a monte e ultrapassando em eficácia os traficantes cariocas, as autoridades estaduais e federais não souberam responder com uma melhor recolha de informação e, sobretudo, controlo das actividades dos dirigentes confinados aos presídios.
Há quatro anos as autoridades paulistas declararam o Primeiro Comando da Capital uma «organização falida», mas, agora, Godofredo Bittencourt, responsável do «Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado», penitenciou-se ao comparar o bando a uma empresa que escapou ao processo de falência, «conseguiu um empréstimo e voltou a funcionar».
A demonstração de força dos bandos criminosos paulistas, que obrigou as autoridades a negociar com os líderes detidos, esvair-se-á a curto prazo pois é muito prejudicial ao bom andamento dos negócios de tráfico de drogas e armas. O narcotráfico brasileiro não tem o músculo dos cartéis colombianos de Medellín e Cali que controlavam os circuitos de produção, comercialização e lavagem de dinheiro, com o concomitante controlo físico de territórios e corrupção generalizada dos sistemas político e judiciário.
O problema persistirá em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife ou na «tríplice fronteira» do Iguaçu, não só pelas desigualdades sociais num país em que metade da população subsiste com menos de 2 euros por dia, mas, também, porque as reformas legislativas e o investimento no treino das forças de segurança se fazem esperar e demorarão a produzir resultados num combate coordenado entre autoridades federais e estaduais contra o crime organizado.
A guerra da bandidagem faz, assim, claudicar ainda mais a confiança nas instituições do estado brasileiro já tão abalada por escândalos políticos de alto coturno.