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Bottom Line

A capacidade de regeneração das sociedades fará sair de cena os rostos crispados pela permanente concentração nas folhas de cálculo, os jovens apressados, mal alimentados e mal dormidos, viciados no uso dos telemóveis e dos «lap-tops», exercício a que fre

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Os princípios da gestão moderna mandam que sejamos obsessivamente exigentes com a «bottom line». A última linha da Conta de Exploração expressa, efectivamente, o sucesso ou o insucesso da gestão, de que resultará a satisfação ou a insatisfação dos Accionistas. Alguns teóricos advertem, a propósito, que os dirigentes das empresas são contratados pelos Accionistas para defenderem o seu interesse e não pelos clientes para satisfazerem as suas preferências e expectativas, o que não pode deixar de entender-se como um fundamentalismo levado ao extremo.

Descontado o exagero, nada a dizer quanto a uma nova fórmula de expressar o velho princípio de que o lucro é o objectivo primeiro de uma empresa. O que poderá estar menos bem será o erigir de um objectivo empresarial – se bem que o mais importante de todos eles – numa espécie de Deus implacável, e insaciável, em cujo altar se devem sacrificar todos os valores e todos os princípios que não conduzam directamente à acumulação na «bottom line». Aceitar uma tal orientação corresponde a admitir que a empresa pode comportar-se como um ente desligado do meio, sem outra obrigação para com a sociedade que não seja a de pagar impostos. E, essa, com pouca vontade...

Não é assim. Ou, pelo menos, não deve ser assim. Uma empresa tem obrigações de natureza social, cultural e humanitária para com as pessoas que a servem e para com a comunidade, na qual se alimenta e da qual depende.

A história sempre reservou lugar de destaque para os grandes chefes de empresa, que marcaram a sociedade do seu tempo, criando riqueza e estimulando o progresso nas suas organizações, mas, também, no meio social em que estas se integram. Homens que foram protagonistas interessados dos grandes acontecimentos do seu tempo, da política ao desporto, das artes à intervenção social. Deles se pode dizer que acrescentaram valor. Que da sua visão e do seu contributo resultaram obras que valorizaram a sua terra, a sua comunidade ou o seu País.

A moderna ditadura da «bottom line» não favorece uma atitude de abertura ao mundo, antes limita severamente o espaço de actuação dos dirigentes que, se não estiverem atentos, poderão ficar reduzidos a meras componentes de uma engrenagem sem outro mérito que o de alimentar a última linha. Profissionais excelentes que se afundam num autismo sem remédio, que, na empresa, se tornam insensíveis aos problemas e às expectativas das pessoas que os cercam e, fora dela, se convertem, em «funcionários do lazer». Cumprem como obrigação pura aquilo que deveriam ter como fonte de prazer, programam «hobbies» com a mecânica precisão de um processo produtivo, organizam acontecimentos sociais como prolongamento inevitável de acções de «lobbing», reduzindo a zero o prazer do convívio e matando à nascença qualquer possibilidade de desfrute pessoal.

É preocupante o crescimento de uma vaga de dirigentes sem sensibilidade, sem gosto e sem ânimo. Pessoas sem tempo para a leitura, para o cinema, para a música, para as exposições, para a simples tertúlia. Que se mecanizaram ao ponto de terem deixado morrer em si todas as fontes de interesse que transcendam a profissão. Vítimas das suas próprias opções, ou de um processo a que não puderam reagir, deixaram de conseguir apreciar a beleza, a harmonia, a alegria. A menos que a descoberta da sua existência seja consequência da resposta favorável a perguntas como: quanto produz, quanto rende, quanto economiza.

Há alguns anos um aluno brilhante de uma escola de Economia, futuro estadista, sentiu-se exposto ao reconhecer que não lhe sobrava tempo, nem gosto, para leituras para além das do estrito âmbito das cadeiras do curso. Disposto a fechar uma fresta da sua vulnerabilidade, resolveu a questão de forma expedita: algum tempo depois informava que já tinha lido vinte e tal obras de referência da literatura universal. Inquirido sobre como conseguira tal prodígio esclareceu, candidamente, que lera os primeiros capítulos, para perceber de que tratava cada livro, e os finais, para saber como acabavam. Eis a eficiência em todo o seu esplendor. Quanto ao prazer de fruir ...

Não podemos aceitar que da «geração tecno» fique o registo histórico de uma espécie de reedição das invasões bárbaras, quando omundo civilizado foi varrido por hordas de gente inculta e insensível, todavia, poderosamente eficaz nos seus objectivos. A umciclo de crescimento económico anormalmente prolongado não tem que corresponder a fatalidade de um buraco negro cultural. O fortalecimento das empresas e a defesa dos interesses dos Accionistas hão-de ser compatíveis, por exemplo, com a opção por um projecto de qualidade arquitectónica indiscutível, para a sede da empresa, em alternativa a um «caixote» de ferro e betão que só poderá espelhar a insensibilidade de quem o aprove.

«Silent Spring» é o título do livro, escrito em 1962 por Rachel Carson, que cedo se converteu num manifesto para ecologistas de todos os matizes. A autora, de visita aos campos da sua infância, surpreendeu-se por não ouvir o canto dos pássaros pela manhã. Na planura, o milho crescia exuberante, livre dos insectos e dos pássaros que os pesticidas tinham erradicado, mas o aumento de produção tivera um custo pesadíssimo: a eliminação de várias formas de vida. Seria uma fatalidade se um estilo de gestão tão centrado nos resultados como o dos produtores de milho do Ohio viesse a condenar ao silêncio as vozes e o labor dos artistas dos nossos dias, num imenso vazio que só pode ter como consequência o empobrecimento da humanidade.

É a perspectiva histórica que consente alguma esperança. Há pouco mais de um século, Eça de Queirós nas suas «Cartas de Paris», exultava com o fim da melancolia doentia do romantismo e com a abertura ao mundo e à vida, que os alvores do Século das Luzes já prenunciavam: «a multidão contemporânea nada vê no universo mais digno de ser estudado e gozado do que a sociedade, essa coisa cintilante e vaga que pode compreender desde as criações da arte até aos menus dos restaurantes, desde o espírito das gazetas até ao luxo das librés (...) porque, na verdade, o interesse do universo está todo na vida, na sua luta, na sua paixão, no seu cerimonial, no seu ideal».

Os períodos negros da civilização foram sempre de curta duração. Para o seu alimento, a humanidade tem tanta necessidade de bens espirituais como dos materiais. No final, a capacidade de regeneração das sociedades fará sair de cena os rostos crispados pela permanente concentração nas folhas de cálculo, os jovens apressados, mal alimentados e mal dormidos, viciados no uso dos telemóveis e dos «laptops», exercício a que freneticamente se dedicam nas salas de espera dos aeroportos das suas escalas. Gente sem alma, sem cultura e sem graça que, se crescesse em número, poderia vir a dar razão à inquietação de Czeslaw Milosz: «Estes homens de negócios com olhares nulos e sorrisos atrofiados... Foi a estes vermes que veio a desembocar uma tão delicada e complexa civilização?».

Esperemos que não passe de uma ameaça, de um curto episódio sem outras consequências que um mero desvio no caminho do progresso. No final, é a aurora que triunfa sobre as trevas.

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