Opinião
As doenças políticas
A obra de Carlos de Oliveira mede-se, na estante, com um palmo de mão. Pequena mas uma das mais significativas e importantes da literatura portuguesa de sempre.
A obra de Carlos de Oliveira mede-se, na estante, com um palmo de mão. Pequena mas uma das mais significativas e importantes da literatura portuguesa de sempre. O tempo não vai propício ao conhecimento daqueles que forneceram à pátria a fisionomia moral e estética. O "best seller" (a besta célere, na primorosa definição de Alexandre O'Neill) sobrepôs-se ao bom gosto e ao bom senso. E a Imprensa, sobretudo, arca com pesadas responsabilidades do despautério.
De vez em quando releio páginas dos meus velhos companheiros inconformados. Eu era um rapaz novo, esgalgado, e amesendava-me na tertúlia deles com a humilde sensação de que saía dali muito mais rico e conhecedor. Eles agasalhavam-me de afecto, com irónica atenção. Um numeroso grupo de portugueses ilustres, antifascistas, escorados numa ética rigorosa e numa solidariedade imbatível. Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Manuel Mendes, Augusto Abelaira, os mais constantes nas mesas de café que se iam fechando, substituídos por delegações bancárias. É uma história longa, de longas amizades, e da construção de um rapazote num homem forte de convicções.
Deu-me, agora, para revisitar os livros de alguns deles. O Carlos está junto do Zé Gomes, este ao lado de Mário Dionísio, o Mário Dionísio encostado ao Abelaira. Representam uma época e uma ética de existência que deixou de comparecer no nosso quotidiano.
O Carlos de Oliveira morreu em 1981, ainda não completara 60 anos. Soube da notícia por telefonema do Piteira Santos, à data director-adjunto do "Diário de Lisboa." E, à tarde, encontrei o Herberto Hélder cheio de lágrimas, no Largo Trindade Coelho, que me abraçou, comovido, pela súbita morte do amigo comum. O desaparecimento do grande escritor abalou, fortemente, muitos dos seus camaradas, em especial José Gomes Ferreira, já com 81 anos, que perdia o amigo de sempre e de todos os dias.
"A minha doença é política", dizia Carlos de Oliveira, dois ou três anos depois do 25 de Abril. Ele representava, afinal, uma grande geração, que se batera pela liberdade com as armas que lhe eram próprias e, amiúde, tinha pago com a masmorra o preço dessa luta.
Relembrei essa gente, como num tropel de imagens, tenho nas mãos um romance extraordinário, "Não Há Morte nem Princípio", de Mário Dionísio, tão esquecido!, tão mal lido!, retrato reinventado de um grupo que jogara tudo no regueirão do sonho e da esperança. Fazer o paralelismo com este tempo desgraçado torna-se-me imperioso. Assim como agora, o desalento voltara a tombar sobre aqueles que acreditavam nas "infinitas possibilidades do homem" (como era usual dizer-se). Afinal, essas possibilidades continuavam a ser desmentidas pela História. E a História é uma deusa, além de cega, inclemente.
A geração que se lhe seguiu, a minha, foi contagiada pelo encanto do futuro e pelo desencanto do agora. Os meus amigos são tomados, como eu, pelo turvo destino. Não há nada que se lobrigue, no horizonte, que constitua um leve sinal de esperança. Nada. Envelhecemos sem envilecer, é certo, mas pouco mais somos do que sobreviventes de outros sobreviventes. O Carlos e o Zé Gomes, sobretudo, previram a fatalidade de um povo esmorecido e traído nas suas mais puras e asseadas ilusões. Murcharam, os meus amigos, como eu e os meus amigos vamos assistindo a esta miséria moral que atacou o País de alto a baixo, ao mesmo tempo que reduzimos a quase nada as nossas antigas aspirações.
"Que fazemos aqui?", perguntou, um dia, Carlos de Oliveira. Curioso: a mesma pergunta formulou-a, há dias, um querido amigo, que oculta com sarcasmos e ácidas ironias o drama que nos atingiu. Tínhamos ouvido José Sócrates no Parlamento e tudo aquilo nos cheirava a mofo, a receita estudada sem brio e sem zelo. Esta gente prostituiu as palavras, destruiu o exacto sentido do que se deve dizer, aniquilou a lealdade devida a quem a elegeu.
O Zé Gomes afirmava que, depois de Vasco Gonçalves, pouco restava às sobras da honra. Viu-se. Um caudal de mentirosos, de oportunistas, de aventureiros, de ignorantes assenhoreou-se do poder nos vários escalões e o resultado é esta desgraça que se admite sem revolta nem indignação. Entendo, cada vez mais, o desgosto dos meus amigos antigos. Haviam percepcionado, através dos indícios que a época e os políticos deixavam, as tristes décadas vizinhas. Tinham envelhecido e a pátria que tanto amavam, que tão bem haviam cantado, fora traída. E tudo em nome da democracia, da liberdade e da prosperidade.
Há qualquer coisa de podre, há qualquer coisa de decadente e de vil neste tempo. Repare-se no rosto dos que estão no poder, e no daqueles que estão preparados para os substituir. Sempre aquelas caras que pouco se alteram. Sempre os mesmos hábitos. Sempre o mesmo sarro da aldrabice, da dissimulação, do desdém por todos nós. As eleições estão à porta. As sondagens fornecem-nos indicações arrepiantes. A mesma clique, a mesma casta, a mesma direcção e o mesmo sentido.
Regresso à leitura de Mário Dionísio.
De vez em quando releio páginas dos meus velhos companheiros inconformados. Eu era um rapaz novo, esgalgado, e amesendava-me na tertúlia deles com a humilde sensação de que saía dali muito mais rico e conhecedor. Eles agasalhavam-me de afecto, com irónica atenção. Um numeroso grupo de portugueses ilustres, antifascistas, escorados numa ética rigorosa e numa solidariedade imbatível. Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Manuel Mendes, Augusto Abelaira, os mais constantes nas mesas de café que se iam fechando, substituídos por delegações bancárias. É uma história longa, de longas amizades, e da construção de um rapazote num homem forte de convicções.
O Carlos de Oliveira morreu em 1981, ainda não completara 60 anos. Soube da notícia por telefonema do Piteira Santos, à data director-adjunto do "Diário de Lisboa." E, à tarde, encontrei o Herberto Hélder cheio de lágrimas, no Largo Trindade Coelho, que me abraçou, comovido, pela súbita morte do amigo comum. O desaparecimento do grande escritor abalou, fortemente, muitos dos seus camaradas, em especial José Gomes Ferreira, já com 81 anos, que perdia o amigo de sempre e de todos os dias.
"A minha doença é política", dizia Carlos de Oliveira, dois ou três anos depois do 25 de Abril. Ele representava, afinal, uma grande geração, que se batera pela liberdade com as armas que lhe eram próprias e, amiúde, tinha pago com a masmorra o preço dessa luta.
Relembrei essa gente, como num tropel de imagens, tenho nas mãos um romance extraordinário, "Não Há Morte nem Princípio", de Mário Dionísio, tão esquecido!, tão mal lido!, retrato reinventado de um grupo que jogara tudo no regueirão do sonho e da esperança. Fazer o paralelismo com este tempo desgraçado torna-se-me imperioso. Assim como agora, o desalento voltara a tombar sobre aqueles que acreditavam nas "infinitas possibilidades do homem" (como era usual dizer-se). Afinal, essas possibilidades continuavam a ser desmentidas pela História. E a História é uma deusa, além de cega, inclemente.
A geração que se lhe seguiu, a minha, foi contagiada pelo encanto do futuro e pelo desencanto do agora. Os meus amigos são tomados, como eu, pelo turvo destino. Não há nada que se lobrigue, no horizonte, que constitua um leve sinal de esperança. Nada. Envelhecemos sem envilecer, é certo, mas pouco mais somos do que sobreviventes de outros sobreviventes. O Carlos e o Zé Gomes, sobretudo, previram a fatalidade de um povo esmorecido e traído nas suas mais puras e asseadas ilusões. Murcharam, os meus amigos, como eu e os meus amigos vamos assistindo a esta miséria moral que atacou o País de alto a baixo, ao mesmo tempo que reduzimos a quase nada as nossas antigas aspirações.
"Que fazemos aqui?", perguntou, um dia, Carlos de Oliveira. Curioso: a mesma pergunta formulou-a, há dias, um querido amigo, que oculta com sarcasmos e ácidas ironias o drama que nos atingiu. Tínhamos ouvido José Sócrates no Parlamento e tudo aquilo nos cheirava a mofo, a receita estudada sem brio e sem zelo. Esta gente prostituiu as palavras, destruiu o exacto sentido do que se deve dizer, aniquilou a lealdade devida a quem a elegeu.
O Zé Gomes afirmava que, depois de Vasco Gonçalves, pouco restava às sobras da honra. Viu-se. Um caudal de mentirosos, de oportunistas, de aventureiros, de ignorantes assenhoreou-se do poder nos vários escalões e o resultado é esta desgraça que se admite sem revolta nem indignação. Entendo, cada vez mais, o desgosto dos meus amigos antigos. Haviam percepcionado, através dos indícios que a época e os políticos deixavam, as tristes décadas vizinhas. Tinham envelhecido e a pátria que tanto amavam, que tão bem haviam cantado, fora traída. E tudo em nome da democracia, da liberdade e da prosperidade.
Há qualquer coisa de podre, há qualquer coisa de decadente e de vil neste tempo. Repare-se no rosto dos que estão no poder, e no daqueles que estão preparados para os substituir. Sempre aquelas caras que pouco se alteram. Sempre os mesmos hábitos. Sempre o mesmo sarro da aldrabice, da dissimulação, do desdém por todos nós. As eleições estão à porta. As sondagens fornecem-nos indicações arrepiantes. A mesma clique, a mesma casta, a mesma direcção e o mesmo sentido.
Regresso à leitura de Mário Dionísio.
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