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30 de Março de 2007 às 13:59

Aquilino, Salazar, Soares e um outro

Os jornais, as rádios e as televisões atribuíram pouca ou nenhuma importância à notícia segundo a qual os restos mortais de Aquilino Ribeiro serão trasladados para o Panteão Nacional. Aquilino é o maior prosador do século XX português e emparceira com os

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É a súmula de uma cultura: não deixou discípulos, apenas epígonos, e leitores entusiastas. Tal qual os atrás referidos. E associou a acção ao pensamento, pegando em armas e fabricando bombas contra o opressor. Inimigo de Salazar, foi por este indicado a um jornalista francês: "Vá falar com ele. É adversário do regime, mas é o maior escritor português vivo".

Convivi com o grande escritor: frequentei-lhe a casa; com ele e outros, seus convidados, almocei na Soutosa, dia inesquecível; sou amigo de longa data do filho Aquilino Ribeiro Machado, e da família deste; e conservo dele a afectuosa memória que o tempo não esmoreceu nem turvou. O autor de "A Casa Grande de Romarigães" foi, um dia, acusado de injúrias à magistratura, num romance, "Quando os Lobos Uivam", e indiciado como réu. O prefácio ao livro é um terrível requisitório contra a farsa da Justiça. Aquilino recusava-se a pagar os 50 contos da caução. De contrário, cadeia. Na manhã do infausto dia, o grande escritor, já adiantado na idade, porém direito como um roble, apareceu no Tribunal da Boa-Hora. Deparou-se-lhe, à entrada, um grupo de amigos: Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Alexandre Cabral, Urbano Tavares Rodrigues, eu próprio e alguns mais. Estávamos preparados para tudo; inclusive para defendê-lo a murro e impedir que o atirassem para as masmorras do Aljube. "Estamos aqui consigo para o que der e vier", disse-lhe Manuel da Fonseca.

A audácia valia o que valia. Mas era a cumplicidade possível, e a presença do respeito, da amizade e da admiração. Ao ver-nos, Aquilino Ribeiro estremeceu, emocionado. Os olhos brilharam-lhe; acenou, breve, com a cabeça, avançou pelas frias lajes, e nós seguimo-lo. Nesse interim, surgiu Acácio de Gouveia, advogado da Oposição republicana, que transportava os 50 contos. A narrativa deste importante episódio da Resistência pode ser lida no prefácio que Manuel da Fonseca propositadamente escreveu para a edição da Editorial Caminho do seu romance "Seara de Vento".

Aquilino reunia-se, habitualmente, com os amigos, numa tertúlia no Café Chiado (onde agora está instalada uma companhia de seguros), e discreteava, com ironia e sarcasmo, sobre literatura, política, e, inevitavelmente, de Salazar. Boatos, historietas e anedotas pertenciam ao falatório. E, certa ocasião, ele disse: "Vocês ainda terão o Botas, mesmo depois de morto: vai estar empalhado!"

A peripécia emerge na altura em que Salazar ganha, em eleição fraudulenta, num instrutivo programa da RTP, apresentado pela inesquecível Maria Elisa Domingues, o título de maior entre os Grandes Portugueses. Digo fraudulenta e não devia dizer eleição. Explico: como no tempo dele, cada "eleitor" "votou" as vezes que lhe deu na veneta, pormenor passível de complacência dado que se trata de "puro entretenimento", no dizer da Maria Elisa Domingues, mas não tão, que possa dispensar o resultado "político", e as extrapolações que daí se obtenham.

No entanto, a vitória de Salazar possui os contornos da vitória de Pirro. Mesmo as alegações produzidas em sua defesa, uma delas de que "endireitara as finanças" correspondem a outra fraude. De facto, foram as "Finanças" que o "endireitaram" e mantiveram no Poder. O curto período da Primeira República (dezasseis anos) foi objecto de conjuras, dissídios, conflitos alimentados, financeira e ideologicamente, pelo grande capital, assustado com as reformas radicais, sobretudo durante a época de Afonso Costa, traído, como se sabe, pelo "irmão" maçon Sidónio Pais, e este entusiasticamente apoiado pelos anarquistas.

A Igreja, e o poder subterrâneo do CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), ajudaram ao festim. Salazar é o produto típico de um momento, e sabe converter esse momento numa peculiar reserva histórica. Não é um homem culto: escreve num idioma clássico, contrabandeado, sobretudo, de António Vieira, que chega a plagiar na sintaxe e na locução, sem obter, jamais, a clareza de pensamento, porque, na verdade, o não tem. O salazarismo não existe. Nem sequer o tardo-salazarismo. É a sombra de um desejo, amamentado, doentiamente, por pequeno grupo de anacrónicos fanáticos. Os mesmos que gastaram muito dinheiro em SMS’s para o "empalhado" vencer.

O equívoco do programa da RTP consiste nisso mesmo. Talvez pudesse caracterizar um "entretenimento", acaso a exposição preliminar tivesse maior consistência, a apresentadora fosse mais informada, menos inculta e mais contida, e os participantes mais bem escolhidos. Marcaram o tempo e sobressaíram pela cultura, pelo empenho, pela veemência, pelo didactismo, pelo registo pedagógico o prof. Rosado Fernandes e o escritor Hélder Macedo. 

Não se pode ocultar a malignidade de Salazar. Nem a mediocridade do seu "pensamento" político. Ele representa o mesquinho na mesquinhez. Invejoso e ressentido, o carimbo do seminário, com todas as repressões afins (incluindo a sexual), inculcou-o numa população supersticiosa, misérrima, faminta, analfabeta e ignorante, dominada pelo arbítrio de uma Igreja bafienta e temível. O ferrete da ignomínia ainda não desapareceu, totalmente, da mentalidade por aí caminhante.

O exemplo mais recente é o da supressão de Mário Soares da lista de convidados do dr. Cavaco para as comemorações dos 50 anos do Tratado de Roma. Goste-se ou não de Soares, critique-se com maior ou menor acrimónia a sua acção como político, a ele se deve a entrada de Portugal no conjunto de países que formam a União Europeia. O actual Chefe do Estado cometeu a proeza de nos dizer, através desta omissão deliberada, que não mudou, não esquece e não perdoa. Afinal de contas não esquece quê?, não perdoa quê? Não esquece que Mário Soares, Presidente da República, fez frente ao autoritarismo, por si exuberantemente provado, quando primeiro-ministro? Não perdoa o facto de Mário Soares ter demonstrado, nas Presidências Abertas, que o primeiro-ministro esbanjava dinheiro a rodos e não acorria aos problemas fundamentais do País?
As declarações proferidas pelo actual Chefe do Estado, justificando as escolhas, são um remendo mal cerzido. Salta aos olhos do menos atento a pequena perfídia, perpetrada, como todas as pequenas perfídias, sem grandeza e sem alma.


PORTUGAL, SEGUNDO ANTÓNIO BARRETO

Na terça-feira, a RTP exibiu um dos mais vigorosos programas a que já assisti: "Portugal - Um Retrato Social". O autor, António Barreto, escreveu o texto num idioma admirável, ensinando que se pode ser rigoroso e emotivo, sem nunca deixar de se ser didáctico. A sociologia como jornalismo, e este a beneficiar daquela. Durante uma hora, através de factos e de comparações argumentativas, Barreto apresentou o primeiro capítulo de uma série, certamente destinada a grande êxito. Não oculto nem dissimulo que fui tocado pela forma e pelo conteúdo do trabalho de António Barreto: a ternura com que falou de, e com pessoas, associou-se ao amor manifesto por Portugal. Dilecto: não perca os próximos programas. Vai ter um encontro consigo próprio.

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