Opinião
A União Europeia tem de dizer não a Putin
A União Europeia parece ter abandonado irremediavelmente qualquer tentativa de concertar uma estratégia comum face à cada vez mais problemática relação com a Rússia.
Temida em Varsóvia ou Tallin, parceira assumido em Berlim ou Roma, a Rússia acaba por se impor no desconcerto europeu como um imenso risco cujo único sentido é ser contido de concessão em concessão.
A cimeira entre a União e a Rússia de Sochi, em Maio, deixara a claro a necessidade de os 25 acertarem previamente possíveis estratégias comuns frente a Moscovo, mas, sem que isso tenha sido alcançado e por razões alheias ao bom senso diplomático, a presidência finlandesa convidou Vladimir Putin para a cimeira informal de chefes de estado e governo da União Europeia da próxima sexta-feira que será dominada pela política energética.
Putin chegará a Lahti disposto a escutar um a um os blocos de interesses importantes da União para, em síntese, concluir que todas questões são negociáveis. De facto, irá obliterar a verdade no puro virtuosismo dialéctico de quem se formou nessa grandiosa virtude da análise das contradições alheias.
Viragem estratégica
Desde a cimeira de Maio o Kremlin tem vindo a aumentar as pressões no sentido de consolidar o monopólio estatal no sector do gás natural e petróleo, alterando a anterior estratégia de alargar a entrada minoritária de capitais estrangeiros nas principais empresas de hidrocarbonetos.
Seja mera estratégia negocial a prazo para um aumento da participação da Gazprom ou resultado dos conflitos de interesses das diversas facções que competem pelo poder político-económico junto do Kremlin, facto é que a Shell tem suspenso o seu projecto de 22 mil milhões de dólares para exploração de petróleo e gás na Sacalina por alegadas violações de garantias de protecção ambiental.
A Gazprom, por sua vez, optou por explorar em exclusivo as jazidas de gás de Shtokman, no mar de Barents, deixando de fora as ofertas de investimento das companhias norte-americanas Conoco e Chevron, da Statoil e da Norsk Hydro norueguesas e da francesa Total.
Numa decisão ao arrepio da proclamada estratégia de diversificação de clientes, a Gazprom optou, igualmente, por desistir do transporte de gás liquefeito de Shtokman, a terceira maior jazida do mundo, para os Estados Unidos, preferindo canalizar a produção para os mercados europeus.
Tudo aponta, portanto, no sentido do Kremlin visar um significativo aumento de vendas de gás natural à Europa Ocidental que deverão atingir este ano 151 mil milhões de metros cúbicos, mais 6 mil milhões do que em 2005.
Moscovo pretende, assim, ampliar a breve prazo a sua actual quota de 25 por cento no abastecimento graças à liberalização do sector energético na União Europeia e à diminuição da produção europeia que, incluindo a Noruega, assegura, presentemente, 61 por cento do consumo.
Tal nível de dependência energética é insustentável a prazo e compromete qualquer política de apoio por parte da União Europeia a governos que pretendam, eventualmente, reorientar os seus sistemas de alianças no sentido de uma maior cooperação com Bruxelas.
Moscovo escapa não só a qualquer retaliação pela sua política xenófoba contra os residentes georgianos em consequência do confronto com o governo de Mikhaïl Saakachvili, como, ainda, se vê em condições para impor os seus interesses nos conflitos da Abkazia, da Ossétia do Sul, ou da Transdniestria.
Assassínios e corrupção
Os assassinatos políticos e de ordem económica estão de novo em alta e lançam grandes dúvidas sobre os níveis de conivência ou incompetência das autoridades, apesar de estarem aquém da sangria que marcou os anos 90.
Do atentado que, em Setembro, custou a vida a Andrei Kozlov, vice-presidente do Banco Central, à execução sumária, na segunda-feira, do director comercial da agência noticiosa ITAR-TASS, Anatoli Voronin, passando pela sorte de Anna Politovskaia – que se foi juntar aos doze casos de jornalistas cujos assassínios estão por desvendar desde a chegada de Putin à presidência em 2000 –, e, juntando, também, este mês, o tiro certeiro contra Enver Ziganshin, engenheiro-chefe da exploração de gás da British Petroleum, nas jazidas de gás natural de Kovikta, na Sibéria Oriental, as formas de intimidação violenta estão de volta.
A inclemência russa (por sinal, largamente partilhada pela população russa rendida à tentação nacionalista promovida pelo Kremlin) no norte do Cáucaso passa, em regra, em claro nos círculos decisórios europeus apesar de o relator especial da ONU para a tortura, Manfred Nowak, acabar de ter sido obrigado a cancelar o que seria o primeiro inquérito internacional desde o reinício da guerra na Tchetchénia em 1999, à semelhança do impasse que em se encontra a Cruz Vermelha desde 2004.
A "ditadura da lei" imposta por Putin para recuperar o controlo centralizado no Kremlin das principais instâncias de poder político e económico, após uma década de dissolução de poderes e vampirização oligárquica dos recursos económicos, atingiu, no entanto, os seus limites.
O primeiro limite é de ordem estrutural.
Apesar o investimento estrangeiro ter, segundo o primeiro-ministro Mikhail Fradkov, atingido os 23,4 mil milhões de dólares no primeiro semestre deste ano (mais 41 por cento do que em igual período de 2005), tal volume (com retorno de capitais russos incluído) é ainda insuficiente para a modernização de infraestruturas, particularmente nos sectores chaves do gás natural e do petróleo.
A dependência das receitas do sector de hidrocarbonetos, altamente dependentes das cotações de mercado, suscita, em segundo lugar, sintomas ineludíveis de depressão dos sectores manufactureiros e de sobreavaliação do rublo.
Acresce que a "ditadura da lei" redunda em termos comparativos internacionais num balanço pouco elogioso. As estimativas do Banco Mundial colocam a Rússia no 151º posto num total de 208 países em matéria de eficácia governamental e de entidades reguladoras, estabilidade política, independência judicial e corrupção.
Finalmente, a questão social expressa-se em estatísticas elementares como as que indicam que, apesar de nos últimos oito anos a população abaixo do nível de subsistência (estimado em 2 dólares/dia) ter diminuído para metade, um em cada 5 russos ainda subsiste em situação de pobreza absoluta.
A Rússia é uma potência em declínio a médio prazo por muito bem sucedidas que venham a ser os apelos de Putin para a adopção urgente de políticas capazes de conterem o colapso demográfico iniciado no período soviético, nos anos sessenta, com o aumento da mortalidade.
Até 2008 a Rússia continuará a perder 600 mil pessoas por ano e as projecções apontam para que a população se reduza dos actuais 143,4 milhões para 101,5 milhões em 2050, comprometendo o actual modelo de desenvolvimento.
Que fazer?
A União Europeia não tem forma de confrontar directamente o putinismo por via da sua dependência energética, mas pode, eventualmente, colocar em causa outras esferas de cooperação.
O pacto definido em 2003, em São Petersburgo, em matéria dos chamados Espaços Comuns nas áreas da economia, de liberdade, segurança e justiça, de segurança externa e, finalmente, de pesquisa, educação e cultura, acaba por limitar os objectivos da Política Europeia de Vizinhança, sobretudo no sul do Cáucaso e o seu eventual alargamento à Ásia Central.
A alegada "promoção da liberdade e democracia" visada pela Política Europeia de Vizinhança é contestada por Moscovo que a considera uma ingerência na sua área de influência.
Vladimir Chizhov, o embaixador russo na UE, sublinha reiteradamente a necessidade de prover a interesses pragmáticos comuns a Moscovo e aos 25, descartando a imposição de modelos alegadamente estereotipados de democracia. Numa entrevista recente Chizhov afirmou, concretizando tal raciocínio, ao comparar a situação da Suécia e do Turquemenistão, que para um observador exterior os suecos "podem parecer mais felizes, mas se inquirirmos junto da população do Turquemenistão os turcomenos podem considerar-se mais feliz".
Cumpre, assim, para garantir margem de manobra diplomática, incorporar na revisão da Parceria Estratégica que começará em Novembro cláusulas relativas ao respeito pelos direitos humanos que, à semelhança do que foi conseguido em Helsínquia em 1975, venham a permitir maior margem de manobra diplomática e garantias de actuação para organizações não-governamentais.
A palavra final reside apenas nisto: a Rússia não é, presentemente, parceiro político.
É possível acordar com Moscovo acções de interesse comum ou, pelo menos, de não hostilização, mas alimentar a quimera de que o putinismo seja parceiro numa estratégia de cooperação sem fazer finca-pé nas questões de respeito pelas regras democráticas e dos direitos humanos é um risco insustentável e uma afronta aos princípios que deveriam sustentar a União Europeia.