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28 de Fevereiro de 2008 às 13:59

A Rússia bicéfala na sombra de Salazar

Corria o mês de Março de 2002, a Rússia preparava-se para eleições presidenciais e o inopinado sucessor designado de Boris Ieltsin dava-se a conhecer num livro de entrevistas, “Na Primeira Pessoa”. A ascensão incompreensível de Vladimir Putin que o levou

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A ascensão incompreensível de Vladimir Putin que o levou aos 43 anos a integrar os serviços da presidência (Junho de 1996), depois à chefia dos serviços de informação (Julho 1998), para em Agosto de 1999 acabar como primeiro-ministro e, logo em Janeiro de 2000, assumir interinamente a presidência era o último dos enigmas da era Ieltsin.

As entrevistas a três jornalistas bem intencionados pouco adiantavam sobre as razões da ascensão de Putin. O antigo agente do KGB reconhecia não ter intimidade de maior com o anterior presidente, apesar de confessar que nos últimos tempos tinha jantado na datcha de Ieltsin e bebido umas cervejas com um dos maiores amantes de vodka que a Rússia conheceu.

Se em matéria de mentores políticos o mistério era total, já algumas passagens davam para entender ao que vinha Vladimir Putin.

Putin na versão 2000

Defender a integridade do estado frente à ameaça terrorista tchetchena, recuperar a dignidade nacional e o estatuto devidos à nova Rússia, democrática e respeitadora da lei, eram as linhas de força do discurso de Putin.

Depois, encontravam-se, também, referências a políticos que o inspiravam. Começava por, rindo-se, nomear Napoleão Bonaparte e, logo, em tom mais sério, louvava De Gaulle e Ludwig Erhard, sendo que o economista e chanceler patrono da economia social de mercado interessava particularmente Putin por ter “reconstruído a Alemanha na base de novos valores morais”.

Era o melhor que se conseguia extrair em menos de 200 páginas ao custo de 50 rublos, uma ninharia na altura, e, aproveitava-se, ainda, para ficar a conhecer os políticos com quem Putin dizia partilhar “um sentimento de companheirismo”.

Apenas quatro homens oriundos, tal como Putin, da antiga Leninegrado eram referidos no círculo de amizades próximas e coniventes.

Dois deles eram parceiros do KGB e, ainda que peso pesados na hierarquia do Kremlin, acabaram recentemente preteridos como possíveis sucessores: Sergei Ivanov e Igor Sechin.

Putin nomeava ainda Aleksei Kudrin como amizade segura nascida no início dos anos 90 durante a administração reformista do presidente da câmara de Leningrado, rebaptizada Sankt Petersburg, Anatoli Sobchak. Kudrin continua confinado à sua especialidade na pasta da Finanças.

Por último, surgia o nome de Dmitri Medvedev, um jurista que acabou como vice-primeiro-ministro e presidente da Gazprom antes de ser nomeado sucessor, e cujas presentes declarações não contrastam muito com o que afirmava Putin nos idos de 2000. Era o que se apurava por Moscovo no mês em que Vladimir Vladimirovitch, herdeiro e protector dos interesses da família Ielstin, se entronizava no Kremlin, enquanto “As Marionetas” – um fabuloso e premonitório programa televisivo de sátira que acabaria exterminado em 2002 – já começava a mostrar o judoca Putin a atirar pelos ares gente à esquerda e à direita.

Quem pode fazer o quê a quem?

É o Kto Kovo? (Quem pode fazer o quê a quem?) a frase mais impositiva e omnipresente da cultura antiliberal da Rússia que define, uma vez mais, a determinação do poder no Kremlin.

Impor-se pela força é tanto mais fácil quando todos os estudos de opinião indicam que a maioria dos russos aspira ao reconhecimento do estatuto de grande potência do país, ao retomar da assistência paternalista do estado perdida no final dos anos 80 e a uma redução das crescentes desigualdades sociais, apesar do perene cepticismo ante a corrupção administrativa e empresarial.

A recuperação económica da Rússia nos anos de Putin, ainda que em termos comparativos aquém do crescimento de países como a Polónia, a Estónia ou a Ucrânia, é suficiente para resguardar o regime de uma crise de legitimidade a curto prazo, mas, a sucessão de Putin acaba de criar uma situação insólita.

Putin afirma-se como líder nacional e futuro chefe do governo, mas sapa a legitimidade do herdeiro apesar de afirmar, na sua última conferência de imprensa a 14 de Fevereiro, que o presidente é o garante da constituição e quem define as linhas gerais da política interna e externa.

Ao declarar, logo de seguida, que o primeiro-ministro é o poder executivo supremo na Rússia, Putin – que demitiu dois chefes de governo Mikhail Kasianov e Viktor Kristenko – subverte implicitamente a ordem constitucional russa e abre caminho a todas as especulações.

A Rússia nunca conheceu qualquer sistema de partilha de poder ao mais alto nível do estado, tirando direcções colegiais instáveis durante a era soviética de Krushov e Brejnev, e as actuais querelas entre facções na estratosfera do poder não auguram estabilidade a um regime em que possam coexistir duas entidades reivindicando a última instância de decisão.

Carmona e Salazar no Kremlin

Sobra isto com Medvedev no Kremlin e a sua alegada aspiração de harmonizar a liberdade e a ordem a longo prazo para o que até invoca o exemplo do Despotismo Iluminado da imperatriz Catarina II.
 
Na primeira hipótese Putin subverte a Constituição, usurpa poderes, e cumpre o desiderato de Salazar, tornando-se primeiro-ministro de um rei absoluto.

Neste cenário Medeved faz de Óscar Carmona e deixa a liderança a quem sabe muito bem o que quer e para onde vai.

O delfim, em alternativa, esvazia de poderes o seu administrador executivo e assume a plenitude de imposição da vontade política.

Chega Março, outra vez, e fica-se sem saber o que esperar.

A política é a fatalidade

Talvez valha ponderar o que disse Napoleão num dia de Setembro de 1808, quase quatro anos depois de se fazer coroar imperador, ao encontrar-se em Erfurt com Goethe.

O cabo-de-guerra preparava-se uma vez mais para discutir com Alexandre I, imperador de todas as Rússias, a partilha da Europa, mas Napoleão também ocupava o seu tempo a conversar sobre literatura e teatro com o autor do muito admirado “Os sofrimentos do jovem Werther”.

Dessas conversas ficou registo do que tinha Napoleão para dizer a Goethe sobre o valor das tragédias teatrais: uma escola para os povos e os dirigentes ao contrário dos dramas em que a fatalidade tem um papel determinante. “De resto, o que é que pretendem com a sua fatalidade? A política é a fatalidade”, asseverava o imperador que inspirou Putin.

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