Opinião
A luz de Lisboa
Atacada pela crise, por George W. Bush, pelos neo-conservadores, pela anemia das finanças públicas, pelo zelo atlantista dos nossos futuros parceiros de leste, a Europa do bem-estar e do progresso está em risco.
Lisboa tem lugar reservado na história da União Europeia. Com letras de oiro ou de latão, o nome da capital portuguesa ficará gravado no memorial dessa Europa que um punhado de homens de boa vontade quis um dia construir.
A Declaração de Março de 2000, baptizada de Estratégia de Lisboa, é hoje sentida como a única referência de progresso no espaço da União, o único desígnio capaz de congregar as vontades de povos e interesses tão díspares quanto os das velhas nações europeias. Filha do optimismo dos anos noventa e do ímpeto desenvolvimentista dos governantes de então, a Estratégia de Lisboa está doente. Atacada pela crise, por George W. Bush, pelos neo-conservadores, pela anemia das finanças públicas, pelo zelo atlantista dos nossos futuros parceiros de leste, a Europa do bem-estar e do progresso está em risco.
No longínquo ano de 2000, acreditou-se que era possível estender o sonho do modelo social europeu até Vladivostoque e alimentá-lo com o ciclo virtuoso da prosperidade económica, das novas tecnologias e dos valores democráticos. Animados pela exuberância da nova economia e pela vitalidade da presidência portuguesa, os governos do Velho Continente sentiram-se capazes de se comprometer com um New Deal à europeia, progressista e pós-moderno, capaz de “transformar a Europa na economia mais dinâmica e competitiva do planeta”. Se tudo corresse bem, em 2010 estaríamos inseridos no mais pujante dos espaços económicos globais, gerador de investimento e emprego, sensível às questões do ambiente, do desenvolvimento sustentado e da info-inclusão. Três anos volvidos, tudo mudou. O ciclo económico inverteu-se, ressuscitou o velho vírus da angústia existencial e acentuou-se a convicção de que a Europa política não está em condições de dar resposta às novas contradições sociais e ao surto de pessimismo grassante. De permeio, os falcões neo-conservadores chegaram ao poder e incendiaram os valores da solidariedade em nome dos mais duvidosos critérios de pragmatismo e eficiência.
Quem poderá acreditar na sinceridade dos propósitos da administração Bush quando os Estados Unidos são o exemplo mais gritante de proteccionismo económico, indisciplina financeira e oportunismo político? Entre outras coincidências tragicómicas, lembremo-nos de que o Iraque havia sido o único dos países exportadores de petróleo a ousar denominar a produção de crude em euros, rompendo com a nota verde. E que a China comunista, anti-democrática, xenófoba, violadora dos mais elementares direitos humanos, ameaça permanente para a paz mundial, é o maior aliado da economia estado-unidense. Sem o Império do Meio e as suas gigantescas aplicações em dólares, as finanças do Tio Sam encontrar-se-iam numa situação patética. Não percamos, pois, a lucidez nem nos deixemos embalar por teorias de plástico, tão sedutoras quanto vazias de conteúdo.
Recentemente, o economista norte-americano Will Hutton – presidente da Work Foundation e colunista do Observer e do The Nation – tratou de desmontar o mito da produtividade americana, um dos mais arreigados nos espíritos económicos de ambos os lados do Atlântico. “Diga-se o que se disser, os Estados Unidos são mais ricos do que a Europa não porque trabalhem de modo mais inteligente, mas porque trabalham mais tempo. Em média, os americanos trabalham mais trezentas horas por ano do que os franceses, os ingleses e os alemães; (...) comparativamente à Europa, há um número superior de idosos em actividade e um número inferior de jovens com possibilidade de prosseguirem os estudos. Nos Estados Unidos tem de se trabalhar mais porque a produtividade é inferior. As empresas americanas inovam menos e investem menos do que as europeias. Preferem a acumulação de activos à inovação e aos estímulos à criatividade empresarial”, sentencia Hutton.
É neste quadro económico e social profundamente contraditório que as tábuas da Estratégia de Lisboa emergem como o único (o último?) elemento agregador das diferentes famílias europeias. Porque traduz uma visão de progresso e desenvolvimento sustentado, porque nos faz acreditar numa Europa solidária e com futuro, a agenda de Lisboa é a luz, mesmo que adiada. Seremos capazes de a seguir?