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08 de Junho de 2010 às 12:06

A grande divisão da dívida europeia

Os mercados financeiros quase que conseguiram desintegrar a Zona Euro. Por isso, a ideia de aproveitar o poder do mercado e da engenharia financeira para garantir a viabilidade de longo prazo do euro poderá parecer paradoxal. Mas é precisamente esse o objectivo da...

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Os mercados financeiros quase que conseguiram desintegrar a Zona Euro. Por isso, a ideia de aproveitar o poder do mercado e da engenharia financeira para garantir a viabilidade de longo prazo do euro poderá parecer paradoxal. Mas é precisamente esse o objectivo da nossa proposta de dividir a dívida soberana da Zona Euro em duas tranches, uma júnior e a outra sénior.

As tranches seniores corresponderiam às dívidas até 60% do Produto Interno Bruto (PIB) de cada país participante. Estes países agrupariam as suas dívidas e emitiriam garantias solidárias e conjuntas. A "Blue Bond" ('obrigação azul', cujo nome deriva da cor da bandeira da União Europeia) daí resultante seria um activo extremamente seguro e altamente líquido, comparável em volume às T-bills (Obrigações do Tesouro) norte-americanas, o que contribuiria para o fortalecimento do euro como moeda de reserva internacional e asseguraria baixos custos de refinanciamento para o grosso da dívida da Zona Euro.

Em contrapartida, qualquer dívida acima de 60% do PIB teria de ser emitida como dívida júnior (subordinada), isto é, como uma "Red Bond" ("obrigação vermelha") que seria da responsabilidade exclusiva dos governos nacionais. Estas "obrigações vermelhas" fariam com que os empréstimos superiores a 60% do PIB fossem mais caros, promovendo assim a disciplina orçamental e reforçando os objectivos estabelecidos no Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Além disso, as "obrigações vermelhas" poderiam delimitar-se convenientemente, de forma a não desestabilizarem o sistema bancário, garantindo-se assim que a cláusula de não-resgate que lhes é aplicável fosse uma proposta credível. A título de exemplo, o Banco Central Europeu (BCE) deveria excluir as "obrigações vermelhas" do seu serviço de recompra e deveria existir uma cláusula obrigatória de acções colectivas e uniformes no caso destas obrigações para facilitar a recalendarização da dívida.

Se for implementada com êxito, a nossa proposta diminuirá os custos do serviço da dívida, ao mesmo tempo que reforçará os incentivos para cada país levar a cabo, isoladamente, políticas orçamentalmente responsáveis. É isto que diferencia a nossa proposta daquelas que sugerem que toda a dívida da Zona Euro deveria ser consolidada em obrigações europeias, num espírito de solidariedade.

No entanto, para que a implementação deste plano seja bem sucedida, é preciso uma estrutura de "governance" bastante sólida, na qual os mercados e os contribuintes dos países da Zona Euro mais estáveis possam confiar. Muito especialmente, é preciso evitar o risco de "deriva" - a tentação de ampliar o tecto de 60% da dívida face ao PIB no que diz respeito às "obrigações azuis".

É por isso que estamos convictos de que a alocação anual da emissão de "obrigações azuis" deveria ser delegada a um Conselho de Estabilidade Independente. Esse conselho faria todos os anos, a cada um dos países participantes, propostas do estilo "pegar ou largar" no que respeita às "obrigações azuis" para o ano seguinte. Em seguida, cada Parlamento nacional aprovaria a proposta e fixaria as garantias que o seu país daria em troca da alocação dessas mesmas obrigações.

No âmbito deste mecanismo, poder-se-ia excluir gradualmente do sistema os países que aplicassem políticas orçamentais imprudentes, mediante a diminuição da sua alocação de "obrigações azuis". E os países insatisfeitos com a evolução do sistema poderiam também abandoná-lo de forma gradual, rejeitando a sua alocação anual de "obrigações azuis" durante um número suficiente de anos consecutivos - deixando, por conseguinte, de emitir "obrigações azuis" ou de dar garantias sobre as novas "obrigações azuis" de outros países. O Conselho de Estabilidade Independente, ao não querer perder os membros mais estáveis do clube das "obrigações azuis", teria um forte incentivo para assegurar que os interesses desses países seriam adequadamente tomados em consideração.

Em termos económicos, o esquema das "obrigações azuis" é compatível com a cláusula de não-resgate do artigo 125º do Tratado da União Europeia, porque a garantia da dívida seria aplicável apenas à dívida sénior que correspondesse até um máximo de 60% do PIB, o nível que o Tratado de Maastricht considera sustentável para qualquer Estado-membro da União Europeia.

Assim sendo, a garantia não se aplicaria a crises da dívida provocadas pelos excessivos pedidos de crédito no sentido de financiar políticas orçamentais insustentáveis. Uma vez que, nos termos do artigo 100º do Tratado, um rácio mais elevado da dívida face ao PIB só é permitido em situações excepcionais, como desastres naturais (ocasião em que é possível proceder a um resgate), não haveria como surgirem conflitos jurídicos.

Contudo, o derradeiro teste à nossa proposta está em saber se os países membros da Zona Euro - cuja confiança foi abalada pela crise da dívida - estão interessados em participar conjuntamente neste esquema voluntário.

Acreditamos que sim. Em primeiro lugar, os países mais pequenos, com obrigações soberanas relativamente ilíquidas, beneficiarão substancialmente da liquidez adicional providenciada pelas "obrigações azuis". Em segundo lugar, os países com elevados níveis de endividamento acolherão com agrado esta oportunidade de controlarem os custos dos empréstimos e de se comprometerem com uma disciplina orçamental mais rígida depois da actual crise. Mesmo os países que não estão seguros dos benefícios de uma disciplina orçamental fortalecida poderão considerar a sua participação, uma vez que os mercados poderiam interpretar a sua recusa como um mau sinal.

Mas apesar de as salvaguardas institucionais das "obrigações azuis" serem suficientemente robustas, os países que mais se inquietam com a possibilidade de terem de pagar a factura dos programas de resgate da dívida soberana serão os primeiros beneficiários - devido ao reforço da disciplina orçamental que está associado a este esquema, agora e no futuro.


Jacques Delpla é conselheiro no Conselho de Análise Económica em Paris. Jakob von Weizsäcker é investigador do Bruegel, um "think tank" sediado em Bruxelas.


© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro





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