Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
17 de Novembro de 2006 às 13:39

A Grande Charada

Os socialistas estão todos contentes. Os portugueses, também. Os primeiros aplaudiram, unânimes e congestionados de regalo, o que José Sócrates lhes foi dizer, em congresso. Os segundos, a avaliar pelas sondagens, entendem que o Governo está no bom caminh

  • ...

Os socialistas estão todos contentes. Os portugueses, também. Os primeiros aplaudiram, unânimes e congestionados de regalo, o que José Sócrates lhes foi dizer, em congresso. Os segundos, a avaliar pelas sondagens, entendem que o Governo está no bom caminho. Entretanto, a rua enche-se de contestatários, gritando indignações e descaucionando os aplausos e as sondagens.

O admirável João Proença, curioso secretário-geral da UGT, abandonou, emocionado, uma das manifestações em que protestava contra as políticas de Sócrates, e correu apressuradamente até Santarém, a fim de chegar a tempo para ovacionar as políticas de? Sócrates!

A Direita afirma-se muito desgostosa, porque o Chefe do Governo toma decisões que, desde sempre, pertenceram aos territórios de sua demarcação. Grave, ríspido, severo, fero e desbordante, o Chefe do Governo proclama ser da Esquerda moderna, expansiva, imaginativa e repleta de plurais ambições. Assevera que os "analistas" são criaturas obsoletas, que o PCP e o Bloco constituem aparições góticas, e que os protestatários, no interior do PS (Alegre e Roseta, ipsis verbis), colocam trevas e lavram intrigas na esfuziante alegria do grupo.

Afinal, em que ficamos? Tendo em conta que os socialistas são portugueses; que as sondagens resultam de perguntas a portugueses; que são portugueses os milhares e milhares de manifestantes - parece que a massa civil inscrita no desemprego, padecente de fome, de miséria, de desespero, de angústia estabelece uma mentira e institui uma nova etapa no que António Quadros chamou o "enigma nacional".

Dilectos: estamos no império da metafísica. Creio que nem as explicações de Rui Oliveira Costa, cujas sondagens, sempre pejadas de certezas e desprovidas de dúvidas, nem essas, santo Deus!, conseguem esclarecer o nosso embaraço. As excentricidades portuguesas, criadoras da "via original para o socialismo", expõem, agora, esta nova e piedosa charada.

Eis os acontecimentos diurnos, que tanto exasperam as imaginações. Bem pode Jorge Coelho, truculento, nobre e emocionado, proclamar a harmonia carinhosa, que envolve a "família socialista", resultante da "unidade" do PS, não do "unanimismo". A gramática, porém, não sobrepuja o que, arteiramente, ele expôs. José Sócrates é o maestro indefectível de um congresso que disse "sim" em coro, de pé e aplauso. Mas o congresso, perguntou alguém, é o partido, ou a representação mitigada, e habilmente seleccionada, do que pensa o partido?

O génio de Sócrates está à vista. É um magistral actor, de gesto cuidadosamente estudado, registo de voz alteado, consoante a métrica da locução; habilíssimo leitor do teleponto, por vezes helénico, outras romântico, ocasionalmente neorealista, distribuindo miúdas noções de enunciados sociais, tudo envolvido em fatos de corte requintado, camisa a condizer, gravata "à propos". Possui, de Mário Soares, a repentina cólera; de Guterres, a logorreia; de Constâncio, a lenta conversão do escudo em euro. De Sampaio, nada; de Ferro, ainda menos. José Sócrates é produto de vários equívocos e de múltiplas ambiguidades. Afinal, a imagem devolvida do Partido Socialista - desde a religião ao agnosticismo, da genuflexão ao avental maçónico. Socialismo, propriamente dito - nem o perfume ritual.

Helena Roseta que se cuide. No discurso final, José Sócrates não dissimulou o desagrado para com ela, nem ocultou ameaças. Espantoso!, mas ela é a única voz contrariante, naquele sinédrio de ovações. E não é de agora. Esta mulher tem história e lastro. No antigamente das nossas vidas, pelejou contra o salazarismo. Fez o levantamento da miséria do viver português, quando a arqueologia do fascismo santacombadense transformava em emblema a tragédia do atraso colectivo.

Com outros, advertiu-nos de que os bárbaros estavam a descer a ladeira. Um pouco desamparada, agora, ela repetiu um discreto aviso, ante o fragor atordoante dos que fazem ruir aquilo que sobra da esperança. Ninguém a escuta, todos aqueles recusaram ouvi-la.

Há algo de inquietante e de amargo a extrair das conclusões do Congresso do PS. O que costumava honrar e ornar de orgulho a "casa socialista" era, entre outros desígnios de luta e doutrina, o apoio ao sindicalismo. Todos sabemos muitíssimo bem a que corresponde a UGT, com que objectivos foi criada, e de que avultados fundos dispôs. No entanto, sempre se esperava que os actuais dirigentes do PS enfeitassem de rosas as moderadas diligências sindicais. Nem isso. Proença, o imortal Proença, choramingou uns não sei quantos queixumes sobre o que considerou serem "desconsiderações" aos sindicatos. Naturalmente, Sócrates já dissera o que havia a dizer: manifestem-se para aí à vontade, protestem, contestem, molestem com greves, mas a verdade é que só eu [ele, bem entendido] quero, posso e mando. Proença aplaudira.

O PSD de Marques Mendes, é uma corporação venerável, dividida entre não se sabe bem o quê, e Luís Filipe Meneses, criatura voraz, em cujo blogue denuncia como caloteiro o pobre do José António Lima, da direcção do "Sol"; e como praticante imoderada de tinto a sempre inspirada Constança Cunha e Sá, comentarista da TVI e do "Público". O PSD de Marques Mendes faz lembrar aquelas terríveis frases de Georges Arnaud, no notável "O Salário do Medo". Escreveu o romancista: "A Guatemala é um país que não existe. Eu sei, estive lá". O PSD está lá; porém, é como se não estivesse.

O PCP marca a classe, alimenta a utopia, defende Marx, Lenine e Lukacs. É uma sombra do que foi. O Bloco, especialmente festivo, sôfrego de modernidade, arquejante de simbolismo, parece, cada vez mais, uma estrofe sem rima. O CDS, um nevoeiro a pairar entre D. Sebastião e o misticismo vertido em alexandrinos. Um dia destes, despertará e, assombrado, verificará que está morto.

Com esta oposição, o mais comum dos mortais desempenharia, sem esforço, e talvez melhor, as funções de primeiro-ministro. Por outro lado, o Chefe do Estado acarinha Sócrates com suavidade, o qual, emocionadíssimo, envia-lhe, periodicamente, vários estudos acerca da índole mansa e resignada do português. Esta sociedade elegante entre Cavaco e Sócrates eleva-se pela virtude e simboliza-se pela doçura do recato.

No entanto, na arguta perspectiva de alguns avisados elementos da classe política, "esperem-lhe pela pancada". O Chefe do Estado não está em Belém para se confundir com o Chefe do Governo. Ele está ali para "participar", para "intervir sem interferir". Não será uma força de bloqueio. Mas sim uma força persuasiva.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio