Opinião
A Grande Charada
Os socialistas estão todos contentes. Os portugueses, também. Os primeiros aplaudiram, unânimes e congestionados de regalo, o que José Sócrates lhes foi dizer, em congresso. Os segundos, a avaliar pelas sondagens, entendem que o Governo está no bom caminh
Os socialistas estão todos contentes. Os portugueses, também. Os primeiros aplaudiram, unânimes e congestionados de regalo, o que José Sócrates lhes foi dizer, em congresso. Os segundos, a avaliar pelas sondagens, entendem que o Governo está no bom caminho. Entretanto, a rua enche-se de contestatários, gritando indignações e descaucionando os aplausos e as sondagens.
O admirável João Proença, curioso secretário-geral da UGT, abandonou, emocionado, uma das manifestações em que protestava contra as políticas de Sócrates, e correu apressuradamente até Santarém, a fim de chegar a tempo para ovacionar as políticas de? Sócrates!
A Direita afirma-se muito desgostosa, porque o Chefe do Governo toma decisões que, desde sempre, pertenceram aos territórios de sua demarcação. Grave, ríspido, severo, fero e desbordante, o Chefe do Governo proclama ser da Esquerda moderna, expansiva, imaginativa e repleta de plurais ambições. Assevera que os "analistas" são criaturas obsoletas, que o PCP e o Bloco constituem aparições góticas, e que os protestatários, no interior do PS (Alegre e Roseta, ipsis verbis), colocam trevas e lavram intrigas na esfuziante alegria do grupo.
Afinal, em que ficamos? Tendo em conta que os socialistas são portugueses; que as sondagens resultam de perguntas a portugueses; que são portugueses os milhares e milhares de manifestantes - parece que a massa civil inscrita no desemprego, padecente de fome, de miséria, de desespero, de angústia estabelece uma mentira e institui uma nova etapa no que António Quadros chamou o "enigma nacional".
Dilectos: estamos no império da metafísica. Creio que nem as explicações de Rui Oliveira Costa, cujas sondagens, sempre pejadas de certezas e desprovidas de dúvidas, nem essas, santo Deus!, conseguem esclarecer o nosso embaraço. As excentricidades portuguesas, criadoras da "via original para o socialismo", expõem, agora, esta nova e piedosa charada.
Eis os acontecimentos diurnos, que tanto exasperam as imaginações. Bem pode Jorge Coelho, truculento, nobre e emocionado, proclamar a harmonia carinhosa, que envolve a "família socialista", resultante da "unidade" do PS, não do "unanimismo". A gramática, porém, não sobrepuja o que, arteiramente, ele expôs. José Sócrates é o maestro indefectível de um congresso que disse "sim" em coro, de pé e aplauso. Mas o congresso, perguntou alguém, é o partido, ou a representação mitigada, e habilmente seleccionada, do que pensa o partido?
O génio de Sócrates está à vista. É um magistral actor, de gesto cuidadosamente estudado, registo de voz alteado, consoante a métrica da locução; habilíssimo leitor do teleponto, por vezes helénico, outras romântico, ocasionalmente neorealista, distribuindo miúdas noções de enunciados sociais, tudo envolvido em fatos de corte requintado, camisa a condizer, gravata "à propos". Possui, de Mário Soares, a repentina cólera; de Guterres, a logorreia; de Constâncio, a lenta conversão do escudo em euro. De Sampaio, nada; de Ferro, ainda menos. José Sócrates é produto de vários equívocos e de múltiplas ambiguidades. Afinal, a imagem devolvida do Partido Socialista - desde a religião ao agnosticismo, da genuflexão ao avental maçónico. Socialismo, propriamente dito - nem o perfume ritual.
Helena Roseta que se cuide. No discurso final, José Sócrates não dissimulou o desagrado para com ela, nem ocultou ameaças. Espantoso!, mas ela é a única voz contrariante, naquele sinédrio de ovações. E não é de agora. Esta mulher tem história e lastro. No antigamente das nossas vidas, pelejou contra o salazarismo. Fez o levantamento da miséria do viver português, quando a arqueologia do fascismo santacombadense transformava em emblema a tragédia do atraso colectivo.
Com outros, advertiu-nos de que os bárbaros estavam a descer a ladeira. Um pouco desamparada, agora, ela repetiu um discreto aviso, ante o fragor atordoante dos que fazem ruir aquilo que sobra da esperança. Ninguém a escuta, todos aqueles recusaram ouvi-la.
Há algo de inquietante e de amargo a extrair das conclusões do Congresso do PS. O que costumava honrar e ornar de orgulho a "casa socialista" era, entre outros desígnios de luta e doutrina, o apoio ao sindicalismo. Todos sabemos muitíssimo bem a que corresponde a UGT, com que objectivos foi criada, e de que avultados fundos dispôs. No entanto, sempre se esperava que os actuais dirigentes do PS enfeitassem de rosas as moderadas diligências sindicais. Nem isso. Proença, o imortal Proença, choramingou uns não sei quantos queixumes sobre o que considerou serem "desconsiderações" aos sindicatos. Naturalmente, Sócrates já dissera o que havia a dizer: manifestem-se para aí à vontade, protestem, contestem, molestem com greves, mas a verdade é que só eu [ele, bem entendido] quero, posso e mando. Proença aplaudira.
O PSD de Marques Mendes, é uma corporação venerável, dividida entre não se sabe bem o quê, e Luís Filipe Meneses, criatura voraz, em cujo blogue denuncia como caloteiro o pobre do José António Lima, da direcção do "Sol"; e como praticante imoderada de tinto a sempre inspirada Constança Cunha e Sá, comentarista da TVI e do "Público". O PSD de Marques Mendes faz lembrar aquelas terríveis frases de Georges Arnaud, no notável "O Salário do Medo". Escreveu o romancista: "A Guatemala é um país que não existe. Eu sei, estive lá". O PSD está lá; porém, é como se não estivesse.
O PCP marca a classe, alimenta a utopia, defende Marx, Lenine e Lukacs. É uma sombra do que foi. O Bloco, especialmente festivo, sôfrego de modernidade, arquejante de simbolismo, parece, cada vez mais, uma estrofe sem rima. O CDS, um nevoeiro a pairar entre D. Sebastião e o misticismo vertido em alexandrinos. Um dia destes, despertará e, assombrado, verificará que está morto.
Com esta oposição, o mais comum dos mortais desempenharia, sem esforço, e talvez melhor, as funções de primeiro-ministro. Por outro lado, o Chefe do Estado acarinha Sócrates com suavidade, o qual, emocionadíssimo, envia-lhe, periodicamente, vários estudos acerca da índole mansa e resignada do português. Esta sociedade elegante entre Cavaco e Sócrates eleva-se pela virtude e simboliza-se pela doçura do recato.
No entanto, na arguta perspectiva de alguns avisados elementos da classe política, "esperem-lhe pela pancada". O Chefe do Estado não está em Belém para se confundir com o Chefe do Governo. Ele está ali para "participar", para "intervir sem interferir". Não será uma força de bloqueio. Mas sim uma força persuasiva.