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A democracia avariada

A democracia portuguesa é das piores da Europa. A informação resultou de um estudo da organização britânica DEMOS, forneceu manchete ao “Diário de Notícias” e diz-nos que Portugal está em 21.º lugar numa lista de 25 Estados membros da União. Somos, enfim,

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Pelo menos é o que, constantemente nos quer fazer crer.

Não há democracia sem educação e sem convicções democráticas. E a esmagadora maioria daqueles que nos têm governado não foi dotada desses atributos, nem procurou obtê-los. Para essa gente, o exercício da política tinha e tem como objectivo a organização da vidinha. Os exemplos são tão numerosos que quase se tornaram razão sem argumento. A nossa época é dominada por uma fraca noção da realidade. O “mediatismo” e os desenvolvimentos do virtual e do numérico alteraram, completamente, a interpretação dos fenómenos e criaram uma classe que nos aparece desprovida de todas as determinações, movendo-se num vazio absoluto.

O mundo mudou. Portugal, desta vez, não escapou ao vendaval. Não são, apenas, os comportamentos que se modificaram, criando, acaso, uma nova ética e uma outra estética. A acção cultural é outra. As exigências políticas são, eventualmente, mais altas. Pessoalmente, há muitos anos que entendi isso. Numa entrevista que dei à antiga revista “Ler”, do Círculo de Leitores, afirmava, sem desânimo, nem a menor nostalgia: “O meu mundo morreu.” Ainda bem: o meu mundo estava condicionado por um pensamento ultrapassado e por uma máquina trituradora absolutamente implacável. A minha geração e as que a antecederam fizeram o que era preciso fazer para acabar com o salazarismo. Ponto final. Agora, a História é outra. Repito: ainda bem. E não entro no coro de carpideiras que entoam lúgubres cânticos ao passado e ferozes acrimónias aos mais jovens. Se a democracia portuguesa é o que é não culpem os outros pelo mal que lhes fizeram. A parte de responsabilidade que nos cabe deve ser admitida sem reservas nem lamúrias. Porque, na verdade, alguma coisa de muito bem feito foi realizado.

Cavaco Silva, desconhecedor, ainda não há muito, de que “Os Lusíadas” são compostos de dez cantos, lamentou-se, no discurso do 25 de Abril, do alheamento político e da ignorância cultural da juventude. Não é o melhor juiz desta causa. Quando primeiro-ministro foi, ideologicamente, culpado do esvaziamento ideológico (inclusive no seu próprio partido) e de uma gestão da coisa pública dominada por uma total ausência de sensibilidade social. É a década da inocuidade e de uma certa perda da identidade constitutiva da democracia. Não há que fugir à evidência. Os mais novos possuem outras prioridades e densas preocupações.

Eu próprio, muito novo, conheci antigos soldados gazeados da Primeira Grande Guerra. Era pavoroso observá-los: respiração arfante e dificultosa, olhos desorbitados, movimentos pausados e dolorosos. Alguma coisa eu devia àqueles homens. Mas a verdade é que pouco me interessava por aquela guerra e passava ao lado da efeméride que a assinalava. Sabia que a guerra existira. Isso me bastava. Sentimentos semelhantes ocorrem agora; embora muitos mais jovens se interessem pelo 25 de Abril do que os da geração a que pertenço. A relativização histórica não é ultrajante nem perturbadora. Perturbadora, isso sim, é a crise política porque traduz uma crise da realidade.

E essa crise não atinge, somente, o PSD, nascido de ambiguidades várias, entre as quais a absoluta carência de ideologia. Luís Filipe Menezes foi a vítima sequencial dessa lista de líderes devorados pelas ilusões momentâneas. A barafunda é de tal ordem que uma nulidade como Pedro Santana Lopes ressuscita das cinzas numa patética demonstração de ligeireza e de desconsideração pelos outros. E Manuela Ferreira Leite aparece como uma espécie de objectora de consciência do PSD. Transfere-se a palavra para a imagem, mas a imagem não é de molde a criar empatias. E a palavra é por de mais repetitiva para abrir novos caminhos discursivos a um partido sem doutrina, sem programa definido, sem ideologia, glacial e distante.

Claro que não é com esta gente que a juventude se identifica. E a própria evidente circunstância de Manuela Ferreira Leite ir ganhar a presidência do PSD põe em causa a própria natureza do projecto. Que fez a senhora de notável, quando no exercícios de altas funções governamentais? Nada. Pior: de um modo impermanente, incerto e frágil aumentou os nossos problemas nos sectores de que foi responsável. Perante o cenário, que exigências poderemos fazer aos mais novos?

Andamos, há muitos anos, a viver de realidades cada vez mais virtuais, sem afeição recíproca, afastadas das pessoas, e criando modos de existir não coincidentes uns com os outros. A ideia de comunidade foi aniquilada, e o conceito de sociedade sofreu um desvio falho de determinações e, por isso, fatal. Que nos resta? Tentar compreender os sinais das novas gerações.

APOSTILA – João Céu e Silva, jornalista no “Diário de Notícias”, tem vindo a publicar livros testemunhais sobre algumas das grandes figuras culturais e políticas do nosso tempo. No fundo, é a procura dos traços marcantes de uma identidade que se explica e, amiúde, se justifica através da acção e do pensamento daqueles que deram a Portugal uma fisionomia ideológica, ética e estética. Agora, através da editora ASA, lançou “Uma Longa Viagem com Miguel Torga”, segundo volume de uma série iniciada com “Uma Longa Viagem com Álvaro Cunhal”. Em ambos os trabalhos, o jornalista recolheu depoimentos e uma ampla iconografia que permite o conhecimento de um tempo e a identificação de uma época que definem o conteúdo essencial da nossa História próxima recente. O rigor e a curiosidade profissionais associados num empreendimento cultural muito significativo.

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