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Opinião
21 de Junho de 2006 às 11:54

A contratação de serviços jurídicos pelo Estado

Depoimento inédito de José Miguel Júdice distribuído na 3ª Conferência Anual Jornal de Negócios para Advogados, que decorreu segunda-feira, 19 de Junho, em Lisboa.

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Conferência Jornal de Negócios - 19 Junho 2006

Contratação de serviços jurídicos pelo Estado

1. Antes do mais gostaria de agradecer ao Jornal de Negócios e ao Pedro Guerreiro o convite que me foi feito para participar num painel sobre este tema. Não pude aceitar o convite porque estarei todo o dia numa audiência em processo arbitral já marcada há muito tempo. A presença do meu Sócio Fernando Campos Ferreira e de outros também distintos e qualificados Colegas e Amigos demonstra-me que só ficará a assistência a ganhar com esta minha impossibilidade.

A gentileza do convite foi seguida pela sugestão de que eu escrevesse um texto sobre o tema. Vamos por isso directamente ao assunto, não sem antes frisar que agradeço a oportunidade para, espero que de uma vez por todas, poder clarificar o meu pensamento sobre o tema, apesar de as minhas opiniões nesta matéria serem antigas e inalteradas.

2. A primeira e relevante nota que quero deixar registada é que desde a entrada em vigor do Novo Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) o Estado passou a ter a possibilidade de constituir Gabinetes de Contencioso e de Consulta Jurídica constituídos por Advogados. Tais Advogados terão a limitação de não poderem trabalhar para outros Clientes, mas poderão representar o Estado em Tribunal, ao contrário do que acontecia no anterior Estatuto, em que só os não Advogados é que o poderiam fazer!

3. Fui o responsável último pelos trabalhos preparatórios que conduziram a este estruturante diploma da nossa Profissão. Não se deve estranhar que entenda por isso que o Estado (nesse âmbito se incluindo as Autarquias locais e as entidades reguladoras) deve contratar para os seus quadros Advogados que possam assegurar o apoio jurídico adequado, sempre que necessário. Defendo que, tais Advogados devem ser contratados por um sistema semelhante ao dos «Abogados del Estado» espanhóis, e portanto através de concurso público («oposiciones») competitivo e muito exigente.

4. Como consequência deste novo regime legal regulatório da Profissão, defendo que – de uma vez por todas – se deve concretizar a separação entre a Magistratura do Ministério Público (que deveria ficar encarregada da investigação criminal e da tutela de menores apenas, isto é de funções consentâneas com as características de uma Magistratura) e o Contencioso do Estado, este último entregue a Advogados do Estado em princípio. Admito que seja razoável que, no início do novo sistema, os Magistrados do MP que prefiram a Advocacia à Magistratura possam transitar automaticamente para o Contencioso do Estado, sendo ponderável que os membros dos actuais contenciosos de entidades reguladoras também transitem para o novo sistema. No entanto, depois deste momento inicial, todos os anos o Estado deveria abrir concurso com provas públicas para preenchimento dos quadros necessários.

5. Deste modo o Estado pouparia dinheiro e aumentaria a qualidade da sua acção jurídica. E convém recordar que a crescente juridificação da realidade social e o reforço dos poderes reguladores do Estado vão exigir um aumento forte de dimensão e qualidade dos serviços jurídicos do Estado. Veja-se a esse propósito o interessante exemplo espanhol. Em Espanha há cerca de 400 Abogados del Estado, que - segundo me dizem - asseguram cabalmente as necessidades. O grau de exigência das «oposiciones» atrai muito talento e criou uma imagem de enorme qualidade dos que conseguem entrar no sistema. E tanto assim que, muitas vezes, acabam ao fim de alguns anos por sair para escritórios de Advogados e empresas, dada a enorme competência e especialização que conseguem demonstrar.

6. Em Portugal, infelizmente, a realidade ou a imagem que a sociedade civil tem dela, é muito diferente, como sempre apesar de honrosas excepções. Tal como estão hoje as coisas, muitas vezes o Estado não possui Juristas suficientemente especializados e com a visão e a dinâmica típicas dos Advogados e acaba por defender mal o interesse público.

7. Se o Estado continuar a ser incapaz de fazer esta reforma, que reputo essencial, precisará cada vez mais de apoio de Advogados que terá de ir contratar no mercado. Mesmo que faça a reforma, sempre precisará de Advogados externos – como acontece com as empresas privadas que têm contenciosos internos – em dois tipos de situações: quando o excesso de trabalho tornar mais racional não aumentar quadros e usar em seu benefício a forte competição existente no mercado; e quando precisar de apoio em matérias de grande sofisticação e especialização para as quais dificilmente encontrará em casa a capacidade que a profissão liberal manifestamente potencia.

8. Para este tipo de situações o Estado deve agir de acordo com a lei e o seu espírito e tendo presente as regras aplicáveis do Código do Procedimento Administrativo, da contratação pública e demais legislação aplicável. Deve por isso abrir concursos públicos para a hipótese de apoio genérico e para dossiers específicos. Tais concursos públicos devem ser abertos de forma transparente e sendo divulgados e conhecidos com antecedência os critérios que justificaram a selecção de alguns escritórios em detrimento de outros ou, em alternativa (solução que manifestamente prefiro), devem ser definidas as condições de acesso ao concurso público para que todos os que pretendam concorrer o possam fazer, desde que demonstrem o preenchimento das condições básicas exigidas.

9. Não considero que o critério da «confiança» – sempre inevitavelmente política – deva ser ponderado. Mas se o for, tal deve ser claramente mencionado nas condições do concurso e/ou na decisão sobre admissão de concorrentes. Não acredito que nenhuma sociedade de Advogados portuguesa (ou existente em Portugal) estivesse disponível para aceitar ser seleccionada com base em tal critério. Mas se o critério da «confiança» for ponderado, e se o concurso for por convites, deve-se presumir a confiança em relação a todos concorrentes convidados.

10. Para apoio genérico ao Estado nas áreas em que tal é indispensável, devem ser abertos concursos de pré-qualificação anuais ou bienais. Tais concursos devem ser preparados com todo o rigor para assegurar entre outros o respeito dos principios da legalidade, da igualdade e da imparcialidade (princípios estes que o Estado deve sempre respeitar, aliás). De tais concursos devem resultar listas de Advogados em consórcio ou em prática individual e sociedades de Advogados, aptos a prestar serviço em certas áreas geográficas e de especialização, com preços e condições de serviço definidos. O concurso deve ser aberto com condições mínimas de acesso, mas não por convites. Se tudo for bem planeado, a morosidade natural do processo concursivo não interferirá com as necessidades.

11. A selecção deve ser feita atendendo a critérios como a experiência acumulada, o CV dos advogados envolvidos, os meios tecnológicos existentes (pois isso facilita o apoio jurídico), e naturalmente que também o preço. Estas listas visam evitar o risco de que conflitos de interesse pontuais venham a impedir que um seleccionado, mais tarde, não possa dar apoio jurídico num caso concreto e o Estado fique sem solução alternativa. Mas as listas não devem ser de tal modo amplas que destruam na prática a transparência da selecção e deixem de assegurar o respeito dos principios essenciais do direito administrativo.

12. Na hipótese de operações muito complexas, e em que mostra a experiência que são poucos os escritórios em Portugal (e, valha a verdade, na generalidade dos países europeus) que estão em condições de trabalharem com boa relação de preço/qualidade, considero mais sensata a opção de concurso por convites. Tais situações são pontuais, exigem uma decisão relativamente rápida na selecção dos Advogados e, repete-se, a oferta no mercado é limitada. O convite deve ser feito a um número significativo de sociedades de Advogados, que se podem apresentar sozinhas ou em consórcio, como é evidente. Os convidados devem ser aqueles que detenham experiência acumulada para o tipo de operação considerada. Se o Estado entender não convidar alguns desses escritórios (para além da hipótese de haver em concreto conflito de interesses) deverá obviamente fundamentar a sua decisão de não convite. É recomendável que o processo de concurso e de selecção seja feito com apoio de entidades e/ou profissionais experientes, não sendo de excluir a possibilidade do Estado nomear especialmente para tal efeito júris em que a respeitabilidade e independência dos membros seja inequívoca e reconhecida.

13.Entendo que a decisão que venha a ser tomada pelo Estado em cada concurso deve ser fundamentada. Quer a decisão de adjudicar o trabalho a um dos concorrentes quer a de o não fazer aos outros. As condições de contratação devem ser conhecidas ou, pelo menos, acessíveis a todos os concorrentes e a quem seja portador de um interesse legítimo, nos termos legais.

14. É isto que penso, é isto que defendo. E sobre esta matéria sempre pensei e disse o mesmo, antes de ser Bastonário, durante o meu mandato e depois dele. Também para ver se fica de uma vez por todas clarificado, resumo:

a) Nunca defendi que o Estado deva sempre trabalhar com Advogados independentes. Pelo contrário, esforcei-me e consegui que fosse aprovado na proposta de novo Estatuto da Ordem dos Advogados que o Estado possa ter contenciosos de Advogados.

b) Nunca defendi que o Estado deva trabalhar sempre com os mesmos escritórios de Advogados, quando entenda que deve ir ao mercado buscar apoio. Pelo contrário, entendo que os Advogados devam ser escolhidos por concursos de selecção, aberto ou através de convites a número significativo de entidades.

c) Nunca defendi que o Estado devesse trabalhar sempre com as maiores sociedades de Advogadas independentes portuguesas (sejam elas 3, mais ou menos) e nem sequer que apenas deva convidar essas sociedades a concorrer a concursos que abra para tal efeito. Pelo contrário, sempre defendi que o Estado deve escolher quem entenda que melhor o possa servir, mas que deve justificar e fundamentar, nos termos da lei, as suas escolhas.

d) O que sempre defendi – porque infelizmente sei de experiência própria que raras vezes isso acontece – é que o Estado deve escolher com critério e com transparência quem selecciona para concursos e a quem adjudica.

e) O que sempre defendi é que o Estado gasta muito e mal o nosso dinheiro porque não utiliza este tipo de critérios na selecção de apoio jurídico quando dele necessita.

f) O que sempre defendi é que tamanho não é qualidade, mas também não é falta dela. Sempre recusei a teoria, tantas vezes subjacente a raciocínios públicos ou publicados, de que se uma pequena sociedade de Advogados é seleccionada tem de ser por mérito e se for uma grande sociedade de Advogados tem de ser por razões não transparentes. Por ter reagido à minha maneira – conhecida, aliás de muitos – a este tipo de tese é que tenho os problemas que também são conhecidos, e que pelo menos estão a ter o mérito de provocar um debate sério sobre a questão da contratação de Advogados pelo Estado.

15. Algumas notas finais também quero deixar registadas. A advocacia portuguesa durante muitos anos não se adaptou ao mundo real, pensando que a melhor forma de reagir à evolução era barricar-se e ilusoriamente pensar que tudo voltaria ao tempos antigos, espécie de idade do oiro que o pessimismo antropológico dos portugueses sempre julga que existiu num passado e não existirá no futuro. As coisas não voltaram para trás e um dos sub-produtos deste insensato conservadorismo foi que o ambiente regulatório da profissão dificultou a adaptação da advocacia portuguesa à concorrência externa de Advogados de outros países com regras mais favoráveis e, sobretudo, drenou para fora da Profissão actividades que deveriam e poderiam ser lideradas por Advogados e hoje em dia são dominadas por estruturas organizadas onde não há Advogados ou, havendo, onde são manifestamente os parentes pobres.

16. Os exemplos mais evidentes do que fica escrito são as regras que regulam a actividade de Advogados em países próximos (permissão de solicitação de Clientes, da divulgação dos seus nomes se por eles autorizadas e de métodos promocionais abertos), a ocupação por firmas de auditoria do espaço da consultoria fiscal e o controlo da parte de leão do apoio ao Estado em grandes projectos e operações complexas pelos bancos de investimento. A Ordem dos Advogados – entretida em evitar que se desenvolvesse uma Advocacia forte e capaz de concorrer, em nome de uma ilusória teoria da igualdade – não foi capaz de antecipar esta evolução, que lhe passou ao lado e que agora dificilmente conseguirá controlar, apesar da Lei dos Actos Próprios dos Advogados, que foi possível aprovar, aliás sem votos contra, na Assembleia da República durante o meu mandato de Bastonário.

17. A questão da contratação de Advogados pelo Estado também por aqui passa. A fazer fé em textos divulgados por ou no âmbito de iniciativas da Ordem dos Advogados, está em curso de forma lenta, gradual e estratégica uma contra-reforma em relação ao Estatuto, através de interpretações minimalistas e restritivas dos comandos normativos que os esvaziam de conteúdo, o que é sobretudo patente no regime da publicidade. Episódios recentes que bem conheço, como devem imaginar, devem ser também lidos à luz desta estratégia conservadora e regressiva.

18. A consequência provável deste estado de coisas – se não houver a lucidez de o desconstruir e evidenciar – vai ser uma diminuição das potencialidades de sobrevivência da Advocacia independente portuguesa. Entalada entre um ambiente regulatório que tende a ser mais adverso, uma presença não regulada (ou beneficiária de regulação mais «friendly») de concorrentes estrangeiros (instalados não no nosso mercado), a concorrência de auditores e de bancos de investimento, está claramente a sofrer de discriminação negativa. Recentes decisões do Estado Português a este nível poderão ser interpretadas nesse sentido, ainda que não seja provavelmente essa uma interpretação correcta.

19. Não se trata de defender – pois não o faço e durante o meu mandato como Bastonário tudo fiz, pelo contrário, no sentido de aplicar as leis de uma forma liberal e aberta à positiva instalação em Portugal de sociedaddes de Advogados não portuguesas – uma espécie de preferência nacional ou de apoio à constituição de «campeões nacionais» na advocacia. Embora respeite quem o defenda, embora o Estado de um modo geral venha contribuindo para isso em muitos outros sectores de actividade, julgo que a Advocacia independente portuguesa saberá sobreviver sem ajudas ou vantagens, como até hoje sobreviveu, apesar de sujeita a forte concorrência externa há dezenas de anos. Mas o que me parece é que o Estado – confrontado que vai estando com a lógica da deslocalização e com as realidades dos preços de transferência – deveria ponderar um pouco o problema. Em países com uma Advocacia independente forte como a França, um tema recorrente é a vantagem comparativa que têm os sócios de sociedades de Advogados estrangeiras na optimização da respectiva factura fiscal se comparada com a factura fiscal dos sócios de sociedades francesas. Em Portugal o tema não tem sido tratado, provavelmente por não haver (ainda?) razão para isso.

20. Como em tudo ou quase tudo na vida, gostos não se discutem e todas as opiniões são legítimas e sujeitas a debate. Sempre defendi a liberdade de opinião e que a punição de delitos de opinião é apanágio de sociedades esclerosadas e anquilosadas, atoladas no seu arcaísmo e que ilusioriamente julgam que podem cortar a raiz do pensamento de que fala o poeta. Espero por isso que esta Conferência decorra com total liberdade de expressão, que nela todos os Advogados exprimam o que pensam, sem receios de que as suas opiniões sejam escrutinadas e sirvam para sustentar tentativas de criar um pensamento único, por meio da instrumentalização de poderes delegados pelo Estado que manifestamente não podem servir para tal fim.

Muito obrigado
José Miguel Júdice
Lisboa, 15 de Junho de 2006

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