Opinião
A Bolha de CO3
Três amigos encontram-se ao fim de vinte anos decididos a enriquecer em muito menos tempo que o tempo que os separou. Haviam descoberto as suas profissões actuais – consultor, corretor e contabilista – ...
Haviam descoberto as suas profissões actuais – consultor, corretor e contabilista – numa festa do colégio de freiras onde estudaram juntos até ao 12º e, logo aí, chegaram à conclusão de que tinham competências muito complementares...
O consultor sempre fora um visionário. Era especialista em falar sobre o futuro. Herdara do tio um BMW 507 de 1956, um Jaeger-LeCoultre Reverso Platinum Number One e uma Platinum Presidential Tri-Color - o que em princípio fazia de si uma pessoa rica -, mas havia jurado a si mesmo que nunca se haveria de desfazer daqueles objectos.
O consultor tinha-se tornado um homem conhecido, e mesmo respeitado, quando teve (ou adoptou) a magnífica ideia de começar a dar conselhos de investimento através do telefone e Internet (não era difícil enviar e-mails para várias pessoas de uma mesma empresa, uma vez conhecido o endereço de um deles). A ideia era simples, mas muito eficaz: listava um conjunto de dois mil contactos de pessoas abastadas (uma leitura atenta da imprensa económica e uma leitura muito atenta da imprensa cor-de-rosa fornecer-lhe-ia os «nomes e moradas»); depois, contactava-as dizendo a metade delas que o preço da acção A ia subir e à outra metade que o preço dessa mesma acção ia descer. Se, por exemplo, a acção A subisse, voltaria a contactar os mil a quem havia dado esse conselho. A metade desses, depois de confirmar o sucesso da sua previsão anterior e lembrá-los de que estariam a ganhar dinheiro caso tivessem investido, diria agora que a acção B ia subir, avisando os restantes que essa acção iria descer. Se, por exemplo, a acção B descesse, telefonaria aos 500 a quem havia dito isso, lembrando-os que teria valido a pena terem seguido o seu conselho de venda, e avisava metade desses sobre o previsível aumento do preço da acção C - ao mesmo tempo que, já se sabe, diria o contrário aos restantes. No final de mais um contacto, ficaria com 125 fiéis seguidores (afinal, o consultor havia-lhes dado de forma consecutiva quatro previsões correctas!) e, se quisesse ser mesmo perfeccionista, após mais uns telefonemas e uns quantos e-mails, arranjaria 63 (aqui já não dá para dividir a meio) apóstolos (esses rendidos ao mago das cinco previsões correctas consecutivas).
O corretor era um homem virado para o presente. Filho de uma peixeira da Praia da Vieira, tinha aprendido há muito a única lei que o acompanharia até ao final dos seus dias – comprar barato, para vender caro. Era um herói entre os seus amigos do bairro, depois de, há cinco anos atrás, ter dado um golpe de mestre num tipo ganancioso, dono de uma garagem no Porto. Chegara à cidade nortenha alegando graves problemas financeiros e pedindo ao garagista que lhe guardasse por três dias, um Fiat 600, que dizia ser uma peça muito rara que pertencera a um famoso conde italiano – mas que, na realidade, havia comprado por meia dúzia de tostões. Durante essa curta estada, o dito garagista foi visitado por um credível cavalheiro de Jaguar que, como quem não quer a coisa, lhe ofereceu uma fortuna pelo carrito (o tal Fiat 600) – 7 mil contos, dizendo, igualmente, tratar-se de peça rara - gravando a sua oferta na parte de traz de um cartão de visita, que tinha o número de telemóvel. O carro acabou por passar de mãos por 4 mil contos, depois de longa negociação com o corretor, prevendo o dono da garagem realizar uma mais valia de 3 mil contos, quando o fosse revender ao cavalheiro do Jaguar. Engano o seu, o telefone era falso!
O Contabilista, homem nostálgico, era dono de uma história muito mais mangas de alpaca. Tinha cara de quem não matava uma mosca, activo que havia utilizado já por várias vezes para dar uns pequenos golpes. O último havia consistido na ideia de inflacionar as existências de uma empresa - feito com o patrão, que queria aumentar artificialmente o valor do seu património -, seguida da peregrina lembrança de, no final do ano, mover vezes sem conta as mercadorias entre armazéns arrendados, para que os auditores as pudessem contar mais do que uma vez até somar o número aposto no balanço da sociedade. Os auditores, vá-se lá saber se por burrice ou por outra coisa qualquer, não desconfiaram de nada.
Então e o que é que estes três amigos tinham combinado para enriquecer depressa? Um golpe muito simples, em que, aproveitando as habilidades de cada um, comprariam uma empresa em Bolsa e vendêla-iam por dez ou vinte vezes mais (criando um efeito bolha que, esperavam, deveria estoirar nas mãos de compradores gulosos). A operação recebera o nome de código «A Bolha de CO3», em virtude do «CO» contido nas palavras que definiam a sua profissão e porque eram três.
O consultor tratou de arranjar uma pequena empresa cotada, que, por estar a passar um mau bocado, tinha as acções a preço de saldo. Recorrendo à base de credibilidade alcançada e ao penhor dos bens que herdara, conseguiu, com alguns sócios, comprar a quase totalidade do capital. Depois, com alguma reengenharia financeira, que atirou com o serviço da dívida para dali a dez anos, e o anúncio de um projecto de grande sucesso, que passava pela aquisição de uma boa empresa não cotada, aprestou-se a fazer um aumento de capital.
Preparado o terreno, através de contactos prévios do profeta consultor, o corretor entrou em acção, conseguindo um conjunto de ordens de compra, depois de muito acenar com a necessidade de dar a ordem depressa - porque a procura era bastante e já havia poucas acções para vender (disfarçando a ânsia de vender, através da indicação de que o montante da ordem não podia ser muito elevado em virtude da escassez face à procura).
Conseguida a colocação das acções a preço elevado, compraram, então, a tal empresa e recuperaram os bens dados como penhor. A empresa comprada (evidenciando boa capacidade de endividamento) sustentaria agora a saúde financeira da compradora, cotada mas em dificuldades.
Nos dias a seguir à compra houve contudo que dar um aquecimento ao mercado. Para isso, o corretor encarregou-se de comprar um grande lote aos pequenos investidores que quiseram realizar rapidamente uma mais valia. O dinheiro utilizado foi o dinheiro cedido a título de empréstimo pela empresa. Com a redução do número de títulos disponíveis, seria então mais fácil fazer subir a cotação das acções outra vez (incluindo no esquema o expediente da comunicação de ordens a preços muito elevados no momento do fecho da Bolsa, seguida de desistência da ordem logo na abertura do dia seguinte).
Depois, veio a actividade continuada do contabilista, que teve que puxar pela cabeça para apresentar resultados que sustentassem a bolha...
Para aumentar receitas, inventou vendas a subsidiárias ou a empresas falidas, bem como encomendas e guias de remessa fantasmas. Como a empresa desenvolvia actividades plurianuais (do tipo da construção civil), sossegou ainda os investidores com o anúncio de volumosas carteiras de encomendas e com o reconhecimento antecipado de vendas que só deveriam ser contabilizadas no período seguinte.
Para reduzir os custos, capitalizou abusivamente custos com Marketing e publicidade, software, projectos, manutenção e outros - registando-os nos livros como se de congéneres de instalações ou de equipamentos se tratasse. Não constituiu provisões para cobranças duvidosas, nem para existências, pensões ou impostos, alterou o critério de cálculo de amortizações e registou despesas correntes como se fossem extraordinárias.
Finalmente, para reduzir o valor dos investimentos necessários – que sendo altos espantariam os investidores (como o inquilino que prevê ter que fazer muitas obras na casa do senhorio) –, subestimou as necessidades de expansão da actividade ou a renovação de equipamentos e instalações e evidenciou demasiado optimismo face às necessidades de fundo de maneio, prevendo que clientes iriam pagar mais cedo e que fornecedores não se importariam de receber mais tarde.
Tudo correu e corria, pois, às mil maravilhas. Até que um dia...
A bolha rebentou? Não, o mercado ainda não deu por nada.
Foram todos presos? Não, as autoridades ainda não deram por nada.
Receberam algum prémio de gestão? Não, a imprensa económica ainda não deu por nada.
Então?
Então, chatearam-se: o consultor aconselhou o corretor a comprar um lote de acções de uma empresa praticamente falida, fazendo um favor a uns velhos amigos em situação de crise; para pagar essas acções, o corretor vendeu um Citroën 2 CV ao contabilista por cerca de cinco mil contos; este último, por sua vez, enganou os dois primeiros nas contas da sociedade!