Opinião
A miséria digital
Se as multidões são capazes de criar fenómenos positivos como a identidade coletiva e a partilha de valores, a verdade é que nunca estivemos tão próximo dos fenómenos de justiça das multidões da idade das trevas.
A pobreza e a miséria digitais não se medem pela quantidade de metais nos bolsos de cada pessoa. Este novo tipo de carência mede-se pela privação das liberdades, pela maleabilidade intelectiva da vida privada e pela contaminação das atitudes mentais. Falar de liberdade e de direitos dá muito trabalho e hoje é pobre quem não tem como pagar o tempo necessário para uma reflexão.
Fica sempre mais barato seguir os megafones dos incautos e iludir-se com a profundidade das meditações que a toda a hora estão disponíveis, à distância de um clique. Consumida toda essa lama, será impossível não ser infestado por parasitas que acabam por dominar o corpo dos indivíduos, atando-os as estas realidades adiáforas. Uma sociedade consiste num grupo de pessoas em que, cada indivíduo, participa - bem ou mal - oferecendo a sua quota parte na conceção de novas relações, acontecimentos e ideias. As escolhas coletivas são, por isso, indissociáveis da participação de cada um no seu todo.
Não existirão dúvidas de que as escolhas coletivas têm como grande beneficiário o bem-estar social e a maximização da ideia de felicidade - muitas vezes alicerçada nas ideias de liberdade, igualdade defesa da propriedade privada e acesso a uma profissão ou modo de vida.
Nas últimas décadas continuamos a assistir a este jogo de xadrez - em que as motivações políticas e económicas, as guerras e as convulsões sociais regem - mas o tabuleiro de 64 casas deixou de ser o único teatro em que os jogadores se movimentam. Surgiu o cenário digital e agora os jogadores têm de adequar as suas estratégias e movimentos em casas de outra cor, com extremos mal traçados e movediços. Quando se trata de justiça, as redes sociais assemelham-se às multidões que compareciam nas praças da idade média para assistirem ao espetáculo dos julgamentos sumários e das execuções triviais.
Este retrocesso é um movimento social que deve ser estudado, medido e não descuidado. O comportamento dos indivíduo numa multidão mostra-nos que a responsabilidade pessoal enfraquece à medida que o número de pessoas do grupo cresce. As redes sociais são uma multidão permanente, desregulada, e que tende a agir como entidade única, capaz de criar bolhas especulativas. Se as multidões são capazes de criar fenómenos positivos como a identidade coletiva e a partilha de valores, a verdade é que nunca estivemos tão próximo dos fenómenos de justiça das multidões da idade das trevas.
Este altifalante de ideias e comportamentos deve ser entendido como uma expressão do indivíduo na sociedade em que se insere e, por sua vez, adequado ao primado da lei, das liberdades e dos deveres de cada um, numa responsabilização permanente, tendente à defesa dos direitos liberdades e garantias.
Uma voz pouco informada não pode gritar "culpado" e ter mais força que a voz de um tribunal que diz "inocente". Este tipo de contágio, propagado por todos aqueles que cedem emocionalmente ao movimento do grupo, não é de todo irracional. As emoções extremas nas redes sociais devem ser tão controladas como aquelas que derivam das nossas relações sociais fora dos meios digitais. Não existe qualquer prova científica de que um cidadão passe a ser inimputável a partir do momento em que ativa uma conta nas redes sociais.
No mesmo sentido, os grandes operadores digitais deverão ser impedidos de amplificar ideias, opiniões, comportamentos ou serviços que violem a lei. O cumprimento de regras e o sentido de adequação às normas vigentes deve ser uma realidade dentro e fora dos meios digitais. Só assim garantiremos avanço civilizacional que possa distinguir-nos daquilo que outrora fomos e não apreciamos.