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[174.] TMN (bis)

Regresso ao passado: no Manto Diáfano nº159 referi-me a um anúncio da TMN mostrando "o trabalho como ele é": sete rapazes e raparigas numa tenda, talvez junto ao mar, destacando-se ao centro o "chefe", de camisa branca, mas com o nó da gravata desfeito e

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Os outros seis também empunham telemóveis ou agendas electrónicas, para simular o "trabalho como ele é". O meu artigo centrava-se na forma de representação publicitária do trabalho como se gostaria que ele fosse nas empresas actuais (e não como exactamente é).

Faltou analisar a estética do anúncio, que acabou por se me impor ao fim de vários meses. Trata-se de uma magnífica criação, que merece esta referência tardia. Havia qualquer coisa que soava na minha cabeça sempre que via a fotografia, mas só agora consegui "lá" chegar: a imagem remete para a pintura religiosa ocidental e, em especial para a composição da Última Ceia de Jesus com os apóstolos.

Eu sei: só estão sete pessoas na fotografia e na Última Ceia estavam 13. Mas o leitor ainda não ouviu falar do "downsizing"? Ou então os seis "apóstolos" da foto estão em comunicação telefónica com os outros seis... Os criadores da imagem não quiseram remeter directamente para aquela cena crucial da fundação do Cristianismo, como fizeram outros publicitários em tempos remotos e presentes (ver o Manto Diáfano 95 e 96). Aqui há apenas uma sugestão, um nevoeiro, o que afinal engrandece a imagem: não há cópia, não há pastiche, não há paródia, há inspiração – mesmo que os seus autores não saibam, o que é irrelevante para o resultado.

O ponto de vista da Última Ceia de Leonardo da Vinci e desta imagem é frontal; ambas as composições são simétricas, com metade das personagens à esquerda e metade à direita do chefe; ao fundo, as paisagens fornecem ponto de fuga e profundidade; em ambas a composição é teatral; cada personagem tem vida própria, personalidade, o que ressalta dos gestos; à frente do observador há uma mesa que estabelece a centralidade da cena; nenhum participante está do lado "de cá" da mesa, apenas três dos lados da mesa estão ocupados; toda a acção se concentra no tronco e na cabeça das personagens, pelo que não há necessidade de ver-se o resto do corpo; as mãos das personagens são importantes para exprimir a linguagem (na Última Ceia as mãos estão vazias, aqui têm o "divino" telemóvel); na Última Ceia, Jesus tem o manto caindo pelo peito, aqui o chefe deixa a gravata cair pelo peito; na cena cristã, a refeição de pão e vinho à volta da mesa celebra o ritual da partilha, aqui a reunião à volta da mesa celebra o ritual da partilha de mensagens e documentos, mas não esquece a bebida ritual (neste caso sem álcool); e há na mala no canto inferior esquerdo uma sugestão do saco com 30 dinheiros – pois não há nas reuniões das empresas sempre um Judas em potência?

A imagem da TMN, tal como a tradição da pintura europeia, recorre ao panejamento para criar uma textura suave, uma iluminação variável e a consciencialização da teatralidade da vida. Na Madona de Rafael aqui reproduzida, as cortinas simétricas também organizam o Céu. O trabalho pode não ser como no anúncio da TMN, mas isto é a publicidade como ela é no seu melhor.

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