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O momento da Europa e a oportunidade para Portugal?

Pela primeira vez, vamos ter um mercado de dívida europeia e vamos conseguir alavancar a capacidade de mobilização de recursos numa altura de recessão económica severa e falta de liquidez.

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Os líderes europeus anunciaram ontem de madrugada um acordo histórico para o Orçamento Europeu dos próximos 7 anos e para o Fundo Europeu de Recuperação Económica num valor global de 1824 mil milhões de euros. Nessa mesma manhã, o Governo português apresentou o seu plano de recuperação económica 2020-2030, desenvolvido com base no programa apresentado por António Costa e Silva, documento orientador para as verbas europeias que vão apoiar Portugal num total de 45 mil milhões de euros nos próximos 7 anos.

 

Como habitualmente, todos os líderes europeus afirmam-se vencedores. Para alguns analistas este é o momento em que a Europa mostra a sua força e solidariedade. Para outros, esta é mais uma evidência da disfuncionalidade da União Europeia e das divisões entre países.

 

Em que ficamos? Qual a verdadeira importância do que foi acordado esta semana e qual a matemática que devemos fazer sobre estas verbas?

 

Vamos por partes. O pacote acordado tem 1074 mil milhões de euros para o quadro financeiro plurianual 2021-2027 (o orçamento da Comissão Europeia) e 750 mil milhões de euros para um Fundo Europeu de Recuperação Económica para fazer face aos efeitos da pandemia. Analisemos cada uma destas componentes.

 

O orçamento europeu plurianual recebe um aumento face ao ciclo anterior, mas esse aumento de 12% num período de 7 anos não é expressivo. Não se espera grande alteração nos Fundos de Coesão que apoiam os países menos desenvolvidos. Não é legítimo somar estas verbas a qualquer plano especial de recuperação económica pois trata-se do orçamento regular da União Europeia que já existia e que é apoiado essencialmente pelas contribuições dos Estados-membros (todos nós pagamos este orçamento com os nossos impostos). Os fundos de coesão para Portugal de cerca de 30 mil milhões a 7 anos (o que chamámos no ciclo recente de Portugal 2020) apoiam despesas públicas em educação e formação, projetos sociais, investimentos de empresas e do Estado, em particular nas regiões menos desenvolvidas de Portugal. Funcionam através de uma máquina burocrática pesada, com controlos a nível da Europa e nacionais, para garantir que as verbas são alocadas sem desvios. Estes fundos já têm "clientes habituais" - entidades do sistema público e social que contam com estas verbas para uma parte do seu funcionamento regular. A distribuição destes fundos é lenta e os novos programas normalmente demoram 2-3 anos a arrancar. Portanto, por aqui nada de novo ou disruptivo, nem para a Europa nem para Portugal.

 

Já o Fundo Europeu de Recuperação Económica de 750 mil milhões é verdadeiramente disruptivo, mesmo que a componente de subsídios tenha sido reduzida do valor inicialmente previsto de 500 mil milhões para 390 mil milhões. Aliás, foi uma posição negocial inteligente da Comissão Europeia colocar uma componente forte de subsídios na proposta inicial, de forma a que todos agora possam cantar vitória - os países frugais porque reduziram os subsídios e os outros porque receberão um montante elevado de subsídios, no caso português cerca de 15 mil milhões (7% do PIB de 2019).

 

A criação deste novo Fundo é muito importante para a Europa por três razões distintas:

 

Em primeiro lugar é liquidez extra para injetar na economia europeia no médio prazo (2021 e 2022) exatamente os anos em que, apesar da crise económica profunda, os Estados vão ter que cortar na despesa para reequilibrar as contas públicas. Esta injeção de liquidez, de um montante de cerca de 5.5% do PIB Europeu, ajudará a compensar a destruição de valor económico causada pela pandemia e poderá evitar uma espiral recessiva. Dado ser dinheiro novo, sem compromissos já assumidos com os clientes habituais de dinheiros europeus, pode ser distribuído numa combinação de apoio a áreas urgentes para salvar a economia e aposta em áreas estratégicas para o futuro da Europa.

 

Em segundo lugar, o modelo de financiamento deste Fundo é original. O dinheiro não vem das contribuições dos países, mas sim da emissão de títulos de dívida pela Comissão Europeia. Lembram-se da discussão sobre mutualização de dívida na Europa? Aqui está ela num formato diferente. A Comissão Europeia irá levantar fundos diretamente através de emissões de dívida, emprestando ou dando depois esses fundos aos países europeus para promover a recuperação económica e cumprir as políticas europeias. Portanto, pela primeira vez, vamos ter um mercado de dívida europeia e vamos conseguir alavancar a capacidade de mobilização de recursos numa altura de recessão económica severa e falta de liquidez.

 

Em terceiro lugar, qualquer entidade que emita dívida tem que conseguir gerar receitas para pagar essa dívida. As receitas atuais da Comissão Europeia são essencialmente as contribuições dos Estados-membros. Naturalmente, no futuro, vai haver pressão para criar uma fonte de receitas mais regular o que pode levar à criação de impostos europeus. E isso é uma boa notícia, pois uma das áreas onde a política europeia está a falhar é a área fiscal, onde os países competem entre si e ninguém taxa as atividades que obviamente deviam ser taxadas (nomeadamente, as emissões de carbono, as transferências para offshores e os lucros gerados por empresas digitais sem base geográfica clara).

 

Uma Comissão Europeia que emite dívida e que gere as suas próprias receitas é uma comissão que ganha autonomia e capacidade de atuação para além dos interesses de cada Estado-membro. E só com um verdadeiro governo europeu, com poder de atuação e que sabia o que quer no palco mundial, conseguiremos um melhor equilíbrio geopolítico num mundo cada vez mais perigoso e cada vez menos democrático, em que liberdades fundamentais estão a ser ameaçadas num número crescente de países.

 

A criação e financiamento deste Fundo de Recuperação, nos moldes agora propostos, poderá vir a ser um dos marcos mais significativos do processo de integração europeia, algo só possível de ser aprovado no quadro da maior crise económica e sanitária desde a 2ª guerra mundial. A União Europeia, de facto, avança de crise em crise…

 

E quanto a Portugal? Infelizmente temos tudo para as coisas nos correrem mal: uma queda de 10% a 12% do PIB em 2020 num país já de si descapitalizado e altamente endividado, provocada por uma crise pandémica com um forte impacto de médio prazo no Turismo, um dos nossos setores exportadores mais importantes. Vão ser anos muito difíceis para os Portugueses. O apoio europeu do Fundo de Recuperação é uma oportunidade única de as coisas não correrem assim tão mal. Precisamos de uma forte unidade nacional, de uma enorme solidariedade entre todos, e de uma estratégia clara sobre o caminho de futuro para Portugal. Que haja um debate alargado e construtivo sobre o plano de recuperação económica, que se definam prioridades claras com forte apoio parlamentar, e que se capitalize os 28 anos de experiência na boa (e má) gestão de subsídios europeus, para que estes apoios sejam alocados de forma transparente, expedita e eficaz. Para bem de todos nós.

 

Dean of Católica Lisbon School of Business & Economics

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