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03 de Dezembro de 2019 às 18:54

Retalhos da vida judiciária - II

É preciso cuidado com a imitação ou a importação de outros sistemas, de diferentes países, porque primeiro é preciso conhecer esses sistemas bem e na sua globalidade, antes de importar uma ideia sedutora.

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Dizia eu, ontem, que penso que Álvaro Santos Pereira não tem razão em parte das coisas que disse e foram muito badaladas (e parece que populares), sobretudo no que respeita à execução da pena sem esgotamento de todos os recursos e ao alegado facto de os recursos em Portugal serem infindáveis e levarem a uma grande demora dos processos. Muito sinteticamente, quero dizer(-lhe) - na tripla qualidade de cidadão, jurista e advogado (que me leva a já ter visto muitas coisas, a saber umas poucas nesta área e a ter a obrigação de o dizer - como tem qualquer advogado e a Ordem de todos eles, que é em primeiro lugar defensora do Estado de direito e das liberdades e garantias essenciais, e para ser ouvida precisa de ter voz, mas credível e sensata, não estridente e belicosa) - que se há o direito ao recurso ele tem de ser levado a sério até ao fim, e que há uma coisinha essencial que se chama presunção da inocência, e que talvez um dia mude de ideias se, em vez de ficar pela rama noticiosa que gera afirmações indignadas (sem que eu lhe tire razão nalguma indignação), olhe para o sistema na sua globalidade e, já agora, viva alguma coisa dele ou nele.

 

E quero também dizer(-lhe) mais duas coisas, se me permite: uma, não há recursos infindáveis, antes pelo contrário, e são cada vez menos, e menos ainda têm efeito suspensivo (estou nisto há 25 anos e sei o que digo), e os recursos possíveis não se encontram sequer no "top 5" das causas da "demora" de processos em Portugal (nesse "top 5" estão "cinco vacas sagradas"); outra, é preciso ter algum cuidado, quer com generalizações quer com afirmações que, direta ou indiretamente, permitem identificar (e anatematizar) as pessoas visadas, pois as generalizações são como a pesca de arrasto, levam tudo, e as afirmações (cuidadas ou descuidadas) que apontam o dedo a x ou a y põem em causa, pelo menos, para aí três ou quatro regras básicas da civilização jurídica e convivial que nos levou séculos a conquistar. Pode ser que todos ainda o percebamos, "antes de morrermos de velhos" (para usar a expressão de Álvaro Santos Pereira sobre os alegados recorrentes que "julgou" e "condenou").

 

E gostava ainda de dizer que é preciso cuidado com a imitação ou a importação de outros sistemas, de diferentes países, porque primeiro é preciso conhecer esses sistemas bem e na sua globalidade, antes de importar uma ideia sedutora (frequentemente traduzida em calão, como diria o Eça sobre o nosso francesismo de Oitocentos), e depois é preciso saber se queremos e/ou podemos ter essa globalidade. Nuns casos não queremos, e noutros queremos mas não podemos. À la carte é que não dá, lamento, mesmo que tenha tempo de antena e seja popular. Se houvesse espaço, podíamos falar sobre o sistema brasileiro, sobre o português, sobre os de matriz anglo-saxónica. Et cetera. Poderíamos, e deveríamos, falar sobre tanta coisa, global e profundamente. Mas não há espaço, e presumo que nem haja muito interesse em ouvir. É fastidioso, demora, não rende citações, e muito menos "likes" e partilhas.

 

Um outro exemplo outonal, a traço grosso (que já escasseiam os caracteres disponíveis, e talvez também a paciência do leitor): a procuradora-geral adjunta distrital do Porto, segundo se noticiou, deu uma instrução no sentido de os procuradores não deverem pedir a absolvição no julgamento em processos mais complexos. Muito ruído, essencialmente porque, uma vez mais, se levou a matéria para o rasgar de vestes sobre a possibilidade ou não de haver instruções no seio do MP, tema muito em voga. Primeira questão, na minha opinião claro está: não vejo nenhum problema em haver instruções, aliás julgo que isso resulta da natureza hierarquizada do MP e em nada contende com a autonomia (que aliás está prevista em conjunto com aquela estrutura, donde ou o legislador não tem juízo ou não viu problema no convívio das duas, a não ser que quisesse que hierarquia não significasse nada para além do protocolo...), sendo que a autonomia tem duas vertentes, e nenhuma delas tem que ver com isso ou é por isso posta em causa. Falsa questão, a meu ver.

 

Questão real, essa sim, e essa deveria ter estado (e deve estar) no centro da discussão, é a da objetividade, pois, mal ou bem, o MP tem um estatuto global que em larga medida se alicerça na ideia de que se orienta por critérios de legalidade e objetividade, devendo pois atuar (para além de ter de investigar tudo e mais alguma coisa!...) também a favor do arguido, se assim aqueles critérios impuserem. Esse é que é o problema central desta instrução. Mas talvez, e esta é a terceira questão, a mesma instrução, mesmo sem querer, nos obrigue (deveria obrigar) a pensar se a objetividade realmente faz sentido, e se é generalizadamente praticada (em muitos casos é, já vi, diga-se; mas gostava que se estudasse mais profundamente), e também se esta instrução não põe em letra de forma o que muitas vezes já acontece por "instrução de corredor" ou por "autoperceção do que é melhor", mesmo que sem convicção ou contrário àquela objetividade, que é em cada momento agir de modo a "não comprometer todo o MP" (palavras da instrução, mais ou menos) e/ou a não "arranjar chatices" (palavras minhas).

 

Por isso é que, entre os mecanismos informais e as instruções claras e escritas, que tantas vestes rasgam, eu prefiro as segundas. E é por isso, também, que há tanto tempo proponho que pensemos um pouco nesse abençoado díptico legalidade-objetividade. Discutamos, com tempo, sem barulho, com profundidade. Eu, entre mitos e realidade, prefiro sempre a segunda, exceto quanto é para adormecer melhor. E entre ser popular ou não ser, prefiro a segunda parte da alternativa, se o custo da primeira for insuportável, e, mais, se não se der por ele a curto prazo. Tenho muitas dúvidas de que seja realmente verdade que o processo penal não é "de partes", e tenho ainda mais dúvidas sobre se não deveria, assumidamente, ser de partes. Evitava-se assim muito equívoco e muita discussão. Mas - ah! - também tinha de se mexer no estatuto do MP, que assenta em larga medida nisso, e, não assentando, era capaz de ter de se abandonar muitas daquelas coisas (estatutárias, práticas, rituais, simbólicas e ideológicas) que levaram um dia um arguido a perguntar ao advogado: "Senhor doutor, não percebi uma coisa, quem era aquele quarto juiz, que estava sentado lá no alto à esquerda, mas que esteve o tempo todo ‘contra’ mim?..."

 

Advogado

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