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04 de Novembro de 2020 às 09:20

O estilo Goldilocks

Não se espera sempre compromisso, sobretudo de quem tem poder, porque o mesmo lhe não foi dado para ter sempre um sorriso satisfeito emoldurado por cachinhos dourados.

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Não desgosto do chamado princípio Goldilocks, a que muitas ciências ou áreas do conhecimento apelam. Inspirado na antiga história “Cachinhos Dourados e os três ursos”, remete-nos para a menina que, tendo provado as três, preferiu a papa que não estava nem muito quente nem muito fria, mas “à temperatura certa”. O princípio Goldilocks estabelece, pois, que algo se deve enquadrar entre margens razoáveis, em oposição a atingir extremos. Tem indiscutíveis virtudes, mas está longe de resolver tudo na vida e de servir para todas as situações e todos os desafios, e, além disso, presta-se a tentações perigosas, a maior das quais é alguém adotar um estilo Goldilocks, confundindo a tentativa de temperatura certa com o morno e, pior, com tentar agradar a todos sempre, como se nunca fosse necessário abraçar o quente ou o frio.

Não falta, porém, quem siga o estilo, e tem até sacerdotes empenhados e crentes fervorosos, seja na condução da vida, seja em áreas ou tarefas específicas, como a política, a gestão ou a justiça. Sobretudo hoje, em que a popularidade tende a ser, muitas vezes, o alfa e o ómega de tudo; e, para ser popular (ou tentar ser), há quem ache que a solução é (e de facto parece que amiúde é) o morninho, piscando aqui, sorrindo acolá, tentando fazer pontes entre margens opostas, andando em círculos, estabelecendo e percorrendo geometrias variáveis, que vão do Sul ao Norte, e vice-versa, como se nada fosse, e sempre guiado pela ilusão do agrado mainstream. Um verdadeiro cultor do estilo procura estar sempre sentado em cima do muro, temendo desagradar se escolher a papa quente ou a papa fria, ou, pior, tentando mostrar que gosta de todas e que frio e quente servem igualmente, ou escolhendo a que em cada momento parece ter o favor da maioria.

Mas nem sempre servem todas as temperaturas, e morninho não é sempre o caminho, e o gosto ou o favor da maioria também não, e o compromisso a todo o custo tão-pouco. O cultivo das margens razoáveis é inspirador, evitar os extremos também, e a razoabilidade nunca fez mal a ninguém. Mas sem exageros, porque a quadratura do círculo só fica bem como figura de estilo, não como princípio decisor para tudo, sobretudo para quem tem responsabilidades acrescidas. Certas vezes e para certas coisas, é preciso querer ser menos popular e cortar um bocadinho mais a direito, porque há coisas que não vão lá com o que parece bem, e há extremos que se não podem conciliar, nem conviver. Muito tempo sentado no muro assa os glúteos, liderar sempre pela popularidade desorienta, desanima e, a prazo, não leva longe, porque há um extremo que nunca encaixa (os “excecionais” ou “especiais”) e outro que acaba por se fartar, sucumbindo à síndroma do bom aluno.

Goldilocks está bem como inspiração, mas apenas se conviver com outras figuras, menos amenas ou douradinhas. E até pode ser amiúde uma boa tática, mas dificilmente é uma estratégia, porque nem tudo na vida vai lá com compromissos ou com meias temperaturas, e menos ainda com a orientação para o aplauso. E responsabilidade nem sempre rima com popularidade. Compromisso é uma ótima coisa, desde que não seja o remédio para tudo. Não se espera sempre compromisso, sobretudo de quem tem poder, porque o mesmo lhe não foi dado para ter sempre um sorriso satisfeito emoldurado por cachinhos dourados. A cada um o seu papel e, também, como inevitável reverso, o custo do mesmo, e nem sempre se pode estar bem com o maior número possível, e muito menos com “a vox populi”, seja lá isso o que for (mas não é certamente a “vox Dei”). Exige-se às vezes a alguns que sejam impopularmente capazes de decidir e de ser consequentes com o seu fardo, tentando o melhor (que nem sempre é a temperatura média). Mas, para isso, é indispensável que compreendam bem qual é o seu papel, e, sobretudo, que tenham o Norte e o Sul bem afinados e que possuam todos os órgãos, e todos os órgãos no sítio. Tarefa difícil. Cada vez mais, não é, com o peso esmagador dos likes e da sua incessante procura? A vida não é um conto infantil, nem um show de domingo à noite.

 

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